A zona autônoma temporária e o pensamento nômade
Hoje, essa coluna inicia com a proposta de provocar debates e discursos. Hoje, essa coluna inicia, ponto. Somos pesquisadores de diferentes áreas, de diversos contextos e, por isso, observamos a sociedade de diferentes pontos de vista. Somos professores, artistas, sociólogos, filósofos, escritores, ativistas e artivistas. Nesse espaço, cedido pelo jornal O Município, pretendemos desmistificar alguns conceitos, propor reflexões, traduzir o mundo contemporâneo, propor caminhos, pensar um pouco.
Se você tem medo de ideias e conceitos, não tenha. O conhecimento teórico e acadêmico é tão importante para a construção da realidade quanto o saber do dia a dia porque é na junção de teorias, vivências e debates que conseguimos reestruturar a realidade e sugerir possíveis caminhos. Isso significa dizer que os conceitos e as ideias fazem o mundo mover – você queira ou não. Também significa dizer que é impossível manter o pensamento atualizado sem alterar certas crenças e destruir certos preconceitos – você queira ou não.
Por exemplo, nosso título. Quando nos intitulamos “zona autônoma temporária”, fazemos alusão direta a um pensador americano da cultura anárquica. Ele é Hakim Bey, um historiador, escritor e poeta que cunhou o termo em 1985. Para ele, é possível traçar nos dias de hoje um modelo social predominante, que ele descreve como uma massa de ciclo infinito que incuba o Estado, um Estado após o outro.
Analisando que existem construções discursivas vigentes (modos de falar, hierarquias de ouvir, obedecer, pensar, julgar, de opor-se, de frear o outro, de normatizar o indivíduo), o autor defende que sempre haverão pessoas – artistas, filósofos, sociólogos, ativistas, professores, cidadãos – dispostas a defender o contra discurso normatizante através das mídias, ocupando espaços tradicionais por meio de falas no contrafluxo. A esses espaços, damos o nome de zona autônoma temporária.
O que esperamos com nossos textos nesse espaço aberto de fala? Que conquiste áreas de imaginação, que abra espaços para debates livres da coerção autoritária, que sugira novas manifestações. Que seja um novo canal para problematizarmos novos discursos sociais, lutas identitárias, pautas minoritárias. Para comunicarmos para outros bandos.
Bey define o bando como um grupo de viajantes (leitores) guiados pelo desejo ou pela curiosidade de conhecer outros lados, outras falas, outras vias de pensamento. Esse tipo de laço afetivo pode englobar todos nós, inseridos na esfera das mídias, sendo atingidos pelos incessantes estímulos da Indústria Cultural.
Para o tipo de leitor que uma zona autônoma temporária quer atingir, os discursos do lugar comum não bastam – há a necessidade de tomar outras frentes, de assumir que o mundo é múltiplo e dominado tanto pelos diversos modelos de ser quanto pelas diversas possibilidades de vida.
Não buscamos o pensamento estático, fixo em verdades cimentadas na História da dominação – aquele que se acostuma. Queremos, como propunha o sociólogo francês Gilles Deleuze, o pensamento nômade, aquele que cria conceitos para além das certezas absolutas, que cria condições de narrar enunciados na contramão, aquele que ganha cada vez mais força porque nos permite apontar novas condições de conversações. É esse nosso modelo: a troca de saberes mediante conversas que teremos todas às terças.
O pensamento nômade também é um fenômeno de resistência ao presente – uma experiência das lutas minoritárias (que nem são mais tão minoria assim) a denunciar as ilusões que contaminam o pensamento normativo. Ante o mito da homogeneidade, sua retradução lógica: o mesmo sujeito que pode inventar a ficção de uma conduta de comportamento, pode também se livrar dos estereótipos e lugares comuns que desenvolveu.
Uma zona autônoma propõe, então, um pensamento que esteja sempre no limite do risco, onde pensar seja apenas experimentação, reinvenção da realidade para o alargamento da liberdade e da democratização das condições e práticas de vida. Essa coluna – nos muitos textos que seguirão – não está comprometida em representar a maioria, o todo, o mecanismo.
Pelo contrário, propõe vozes identitárias que expurgam a massa e admite a singularidade, sem nunca esquecer da pluralidade do espaço social. Ao ponto de reconfigurar o mal estar do exercício autoritário de poder, nós – os autônomos nômades – nos dispomos a fazer uma aventura do pensamento em resistência ao presente.
Nos encontramos no próximo texto. Até lá.