Zeitgeist do 21: a liberdade fora das fábricas de moer gente
Zeitgeist: (pronúncia <<tzait gaisst>>) é um termo alemão cuja tradução significa espírito da época, espírito do tempo ou sinal dos tempos. O Zeitgeist significa, em sociologia, o conjunto do clima intelectual e cultural do mundo, numa certa época e em determinado território, ou as características genéricas de um determinado período de tempo.
A época revolucionária iniciada pelo Iluminismo, desenvolvendo-se como uma luta de classes inaugurada pela ascensão da burguesia, funda algo que o sociólogo Guy Debord chamaria de dialética do pensamento – retratada como a instauração de um modelo de pensar que não objetiva a procura total e maniqueísta do sentido do ser. Para o tempo contemporâneo, a busca por uma verdade que nunca é única e estável, que sempre está sendo, eleva o conhecimento ao nível instrumental – dissolvendo toda certeza sólida e fazendo-nos pensar sobre as circunstâncias de cada verdade.
Se o homem do hoje é a totalidade do movimento histórico do Homem, cada época provoca a realidade com projetos prévios de Espírito, ou seja, demarcações conceituais de como cada geração torna-se herói absoluto das suas próprias vontades. Supondo como acabada a noção de uma história única totalizante, o homem que desemboca no século XXI encerra a sessão de tribunal que dita, julga e pune os indivíduos pela ótica da sentença de uma única realidade. Para essa nova forma de pensar – choquem-se os moralistas e conservadores – o ser individual torna-se livre para fazer escolhas que refletem ou não o movimento coletivo.
Hoje, graças às militâncias, revolucionários, ovelhas negras e humanitários, o pensamento não se sustenta alvo de ideologias pragmáticas, mas como uma prática comunitária: mais do que nunca, é preciso fabricar uma realidade que se ajuste a todos os corpos – já não tão dóceis. Radicalismos a parte, o monólogo autossugestivo que determina uma gestão autoritária da vida deve ser combatido não pelo seu caráter de verdade absoluta, mas pela sua essência de contágio.
O que esse novo projeto democrático de visibilidade e existência cunha é a construção de uma história consciente. Se a cultura molda-se pelo contato – no estar sendo – então admite que seja quebrada a regra e reinventado o jogo social. Contra a insistência quantitativa da sociedade industrial e espetacular que previa o indivíduo como molde e a constituição de um homem de bem (unilateral e paródia de si), promove-se uma apropriação histórica qualitativa (que não acredita mais nas inscrições prévias e na cultura uníssona).
Essa alteração entre modelos de pensamento – antes fixo e binário, agora líquido e múltiplo – fica clara quando observamos que nunca se falou tanto no bem estar coletivo e nas práticas de minimizar os efeitos espetacularizantes da vida como cartilha a ser copiada.
Utilizando a Internet como centro democrático da comunicação pós-massa, que confundia meios de informação com meios de formação, o que novos coletivos e movimentos tentam reproduzir como texto e narrativa é a quebra histórica de uma colonização que avança dos territórios nacionais ao globo, do espaço público ao privado.
Pressupondo uma compreensão histórica das lutas que também impõe um reposicionamento das leis – que nada são além de contratos que possuem como base o próprio pensamento presente, descobre-se através das revoluções e da cultura das resistências que a consciência do zeitgeist sempre chega mais cedo para alguns (mais tarde para outros) e sempre através do pensamento – esse resultado da somatória entre o conhecimento e o agir no mundo. Nesse sentido, pode-se afirmar que a liberdade precisa sempre ser ensinada.
Talvez, o momento contemporâneo nos mostre que já ultrapassamos a economia do desenvolvimento e, finalmente, além de sermos classes individuais que buscam a manutenção arrastada de poderes, possamos nos tornar a geração da consciência. A luta histórica prova-se como esse campo imaginário da fusão entre o conhecimento e a ação de onde emergem condições práticas do saber-se um ser coletivo.
A partir do momento em que os corpos operários assumem para si a direção absoluta da sociedade industrial e hiperconsumista, o pensamento da época transforma-se em um acúmulo de produtos ideológicos. Em pronunciamento para a TV nos anos 1970, o então presidente Jimmy Carter dizia do salão oval da Casa Branca:
Nós estamos em um momento decisivo de nossa história. Muito de nós, agora, tendem a venerar o comodismo e o consumo. A identidade humana não é mais definida pelo que a pessoa faz, mas pelo que ela tem. Esta não é uma mensagem de publicidade ou tranquilidade, mas é uma verdade e um aviso.
Com uma competição industrial (principalmente europeia e asiática) reduzida a lixo pelos impactos da guerra, transformando os EUA em uma terra de promessas que advinham principalmente da prática do consumo, a instauração de uma classe média que pela primeira vez na história pertencia ao jogo social – traduzido por um acesso a produtos e pela visibilidade a partir da posse desses produtos – fez com que o capitalismo fosse percebido como a solução ideal para os problemas humanos. De certa forma, o foram.
A partir dessa corrida do ouro, trabalhador e consumidor como categorias de subjetivação do homem passaram a ser ilusões coletivas para o início do século XX. Se nenhuma ideia pode sustentar individualmente seu direito ao poder, a transformação de ideologias de vida e coletividade em mentiras totalitárias aniquilaram a própria possibilidade da realidade e foi necessário à segunda metade do século XX que começasse a redefinir as regras de participação social de cada indivíduo.
As lutas identitárias e das classes, que marcam os anos 1960-1990, surgem da ampla noção de que o trabalhador, como ferramenta em função da prática capitalista, perde o poder sobre o emprego da própria vida. Como uma marcha contrária ao lado negativo da evolução (mas positivo do ponto de vista da construção de uma “civilização moderna” pautada pelo consumo), o homem inicia o século XXI redefinindo-se para além da estrutura de desaparecimento que a massa e a fábrica impõem.
Descobre, então, que sua liberdade como sujeito – o projeto de espírito do nosso tempo presente – é inimigo de toda especialização do poder que resultou da burocratização da vida pelo espetáculo. Contra a manipulação permanente do passado e para que não vivamos à mercê de um futuro doentio, é necessário que consigamos enxergar além desse presente perpétuo.