A solidão pode ter cor?
Não se trata de mera lamentação da veiculação de uma imagem desfavorável, lançada contra si, em regra, de maneira caricata, coisificada, desnudada e hipersexualizada. Não se trata apenas do combate ao mito da inexistência do preconceito de cor que esbarra no mau tratamento cotidiano, na cultura estigmatizada, na oitiva de expressões pejorativas e criminosas e na beleza censurada ou tida como “despadronizada”.
Não se trata do apego injustificado às lembranças de um pecado histórico, mais precisamente de um trágico passado escravagista, no qual a mulher, muitas vezes, era alforriada antes do próprio companheiro, portanto, tinha que saber lidar com a solidão. Não se trata de discurso de vitimização, dado que os indicadores sociais, além de ilustrarem a discrepância sofrida no mercado de trabalho e nas estatísticas da violência, também ilustram o baixo índice de uniões afetivas formalizadas.
Não se trata de uma tentativa de intromissão exagerada na vida pessoal, pois não há nada mais privado do que a liberdade na constituição, ou não, de uma entidade familiar. Também não se trata da fiscalização dos relacionamentos alheios, dado que igualmente não se desconhece a complexidade do agir e do desejo humano e porque muito se ouve a velha máxima: “gosto não se discute”. Muito embora, “o gosto” possa ser uma construção social e uma questão estrutural, é bem verdade.
Não se trata de uma perspectiva desprovida de fundamento, basta ouvi-las e observar atentamente o imaginário social. É possível ir além, pois as produções acadêmicas já começam a se aventurar e se aprofundar nesta temática. Não se trata de uma narrativa de questão desimportante, porque já se fala até em “celibato forçado e definitivo” cujas consequências emocionais podem ser trágicas.
Por ser considerada inferior, totalmente ignorada, há um “tipo” de mulher que foi condenada à eterna solidão, uma punição perpétua, da qual não consegue se desvencilhar.
Com toda a franqueza, em poucas e despretensiosas pinceladas, trata-se, sobretudo, de falar de amor. Isso porque os dados reiteradamente fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram que ainda há um “tipo” de mulher em considerável situação de negligência tanto do ponto de vista econômico como do ponto de vista afetivo.
Em decorrência de sua historicidade, existe aquela mulher que sente em dobro o gosto amargo do subemprego, recebe salários inferiores e, ainda, é vista como um objeto e de pouco valor. Na prática, é cruel reconhecer que existe um “padrão” de mulher que, para muitos, não é considerada digna de ser amada ou respeitada.
Portanto, trata-se da reflexão acerca da importância em se adotar um olhar interseccional sobre as mais variadas identidades e realidades, inclusive, sobre aquela mulher cuja cor da pele não poderia deixá-la invisível ou, afetivamente, marginalizada. Trata-se de uma reflexão acerca daquela mulher que quer ser amada e, apesar da onda de empoderamento, a solidão ainda lhe causa dor, quando não revolta.
Trata-se de uma reflexão acerca daquela mulher, que encontra resistência até mesmo em razão do seu cabelo naturalmente crespo. Trata-se de falar por aquela mulher e, especialmente, para ela que sonha com uma realidade mais unida e colorida, porém, por ora, não por sua opção, tem que saber viver sozinha.
Em tempos de tanta intolerância, desrespeito e discursos dominados pelo ódio, trata-se da reflexão acerca daquela mulher e do seu direito “fundamental” ao amor, independentemente de cor.
Em respeito a todas nós, mulheres, termino esse artigo com um poema da poetisa negra Maya Angelou: Ainda Assim Eu Me Levanto.
Ainda Assim Eu Me Levanto (1978)
Você pode me inscrever na História
Com as mentiras amargas que contar,
Você pode me arrastar no pó
Mas ainda assim, como o pó, eu vou me levantar.
Minha elegância o perturba?
Por que você afunda no pesar?
Porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo
Jorrando em minha sala de estar.
Assim como lua e o sol,
Com a certeza das ondas do mar
Como se ergue a esperança
Ainda assim, vou me levantar
Você queria me ver abatida?
Cabeça baixa, olhar caído?
Ombros curvados com lágrimas
Com a alma a gritar enfraquecida?
Minha altivez o ofende?
Não leve isso tão a mal,
Porque eu rio como se eu tivesse
Minas de ouro no meu quintal.
Você pode me fuzilar com suas palavras,
E me cortar com o seu olhar
Você pode me matar com o seu ódio,
Mas assim, como o ar, eu vou me levantar
A minha sensualidade o aborrece?
E você, surpreso, se admira,
Ao me ver dançar como se tivesse,
Diamantes na altura da virilha?
Das chochas dessa História escandalosa
Eu me levanto
Acima de um passado que está enraizado na dor
Eu me levanto
Eu sou um oceano negro, vasto e irriquieto,
Indo e vindo contra as marés, eu me levanto.
Deixando para trás noites de terror e medo
Eu me levanto
Em uma madrugada que é maravilhosamente clara
Eu me levanto
Trazendo os dons que meus ancestrais deram,
Eu sou o sonho e as esperanças dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto!