Bicha estranha, louca, preta, da favela
Quando ela tá passando todos riem da cara dela
Mas, se liga macho
Presta muita atenção
Senta e observa a tua destruição
Linn da Quebrada – Bicha Preta (2017)
A principal representação homossexual da tradicional família brasileira da televisão aberta dos anos 1990 era a figura de Vera Verão. O ícone gay do SBT – que se destacava em programas como A Praça É Nossa e Domingo Legal – propunha (aos berros) em seu famoso bordão uma readequação impossível à noção binária que ainda assombrava a mídia nos anos 1990: “Epa! Epa! Veja lá como fala sua sirigaita: bicha não, eu sou uma quase mulher”.
No abismo discursivo que separa o espaço das massas brasileiras do final do século passado e a nova (e ainda mal utilizada) noção de autocomunicação e democratização das mídias do novo século, faz-se possível a observação de avanços na agenda pública identitária. O que a comparação entre esses dois artistas – Linn e Vera – permite fazer é também uma readequação linguística do que se autoriza ao sujeito queer do Brasil no século XXI: a definição política, linguística e social do próprio corpo.
No início do livro “Os homens explicam tudo para mim” (2017), da pesquisadora feminista Rebecca Solnit, a autora afirma uma frase advinda da biologia evolucionista: o desenvolvimento do indivíduo embrionário repete a evolução da sua espécie. Chamando de filogenia a história evolutiva de uma espécie, Solnit ainda pergunta: como encarar a filogenia cultural, ou seja, as continuidades e descontinuidades possíveis de discursos e opressões que nos parecem – o tempo todo – fazerem parte do que chamamos de natural?
A resposta pode ser pensada através de um livro da filósofa estadunidense Judith Butler: “Excitable Speech: A Politics of the Performative” (1997), ainda inédito de tradução no Brasil.
No capítulo intitulado “Sobre Vulnerabilidade Linguística”, Butler faz contribuições importantes para a sociologia das identidades. Em uma das passagens, faz refletir:
“Quando nós reivindicamos que fomos feridos pela linguagem, que reivindicação fazemos? Nós atribuímos uma instância à linguagem, um poder de machucar, e nos posicionamos como objetos de sua trajetória prejudicial. Nós reivindicamos que a linguagem atua contra nós. Essa reivindicação é uma instância além da linguagem, que procura aprisionar à força laços estão na cultura. Assim, exercitamos a força da linguagem até mesmo quando procuramos combater sua força, apanhados por vínculos que nenhum ato de censura pode desfazer”
A questão é: seres linguísticos que somos, é necessária uma reforma da linguagem antes da manutenção dos poderes. Tomar para si a linguagem, impedi-la de performar seu yin, sua energia e força destrutiva, também é empoderar-se de métodos de contra-ataque. Absorver das palavras seu poder de força é determinar que elas não possuam poderes extralinguísticos. Tão necessária quanto a reforma dos direitos de vida e expressão, a reforma linguística é um campo de reapropriações das culturas identitárias.
Porque palavras são heranças sociais e históricas, ser chamado de um “nome prejudicial” deprecia e humilha o sujeito porque parece fixar ou paralisar aquele que clama, mas também pode produzir uma resposta inesperada e estimuladora. Se o ato de ser nomeado/ abordado significa ser interpelado pelo outro, então a abordagem da manutenção dos significados inaugura a possibilidade da linguagem ser usada como ferramenta de empoderamento e contra-ataque.
A linguagem performa sua ação no momento do discurso, ainda na condição de momento-ritual, nunca sendo neutra. O “momento” do ritual apresenta sua historicidade condensada: excede a si mesmo nas direções do passado e do futuro, um efeito que constitui e escapa da instância do discurso. Não há escapatória da história no contexto linguístico.
Assim, ser ferido pela linguagem significa sofrer uma perda de contexto. Significa perder o sentimento de autonomia de si, o conhecimento da própria subjetividade. Essa é a constituição do ferimento linguístico: tirar o destinatário do controle de si e, consequentemente, do poder de si.
Butler diz: Expostos no momento de tal estilhaçamento da identidade, mostra-se a volatilidade dos papéis em uma comunidade de falantes. O sujeito pode ser “colocado no seu lugar” pela linguagem ofensiva, mas o problema é que tal lugar pode ser lugar nenhum.
Sobre essa impossibilidade de territórios entre quem utiliza a linguagem ofensiva e quem é seu destinatário, resta reivindicar que a linguagem ofensiva combina dois vocabulários de agressão: um do campo simbólico e outro do campo físico. Sai das bocas e ocupa os becos, os espaços mais afetivos da cidade, suja a coletividade.
No século XX, a reavaliação de termos como <bicha> sugere que o discurso pode ser <retornado> ao interlocutor de diferentes formas, que pode ser citado novamente com novos propósitos, que pode performar poderes reversos. Esse fenômeno sugere que o poder cambiável da linguagem marca uma performatividade discursiva que não atua como atos inerentes das palavras, mas como rituais de significação cujas origens nunca podem ser fixas.
Ser reconhecido por uma linguagem não ofensiva significa ser reconhecido pelo que se é – como existência única, além de fazer com que existam termos preexistentes e não cerceadores pelo qual o reconhecimento se torna possível. O que movimentos como a Marcha das Vadias, as comunidades bichas e pretas, e todos os outros empoderamentos pela linguagem pretendem é retraduzir um léxico ofensivo para um novo patamar: do deboche, de onde se retira todo seu potencial ofensivo.
Assim, Butler ainda afirma que as palavras podem, através do tempo, serem desmembradas de seu contexto original, usurpadas de seu poder nocivo, recontextualizadas em modos mais afirmativos. Em determinado momento do livro, a autora afirma que, por ser um organismo vivo, não podemos saber – anteriormente ao nosso próprio discurso – quais linguagens viverão ou morrerão nas mãos daqueles que usam o poder da linguagem para atos de força e crueldade.
O que podemos fazer, como comunidade, é esperar que o machismo, o preconceito linguístico, a binaridade identitária, a pulsão patriarcal e a heterogenia compulsória sejam as próximas linguagens mortas do milênio que ainda engatinha torto.