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Segundo turno: O humanismo fingido

A violência começa onde o diálogo termina.
Hannah Arendt

Em sala de aula, num momento de debate com os acadêmicos sobre direitos fundamentais e direitos humanos, assistimos a uma palestra que trouxe o depoimento de vida de uma mulher trans (nasceu homem e se tornou mulher). Ainda emocionados com sua trajetória de vida, falávamos e debatíamos sofre intolerância, direitos, homofobia, quando uma acadêmica se manifestou:

– Professor. Meu irmão é homossexual, ele é uma pessoa maravilhosa, querido, pessoa muito boa. Mas, como as pessoas estão agindo hoje em dia, meu pai morre de medo quando meu irmão sai de casa, que possam maltratá-lo ou feri-lo. Meu pai fica com medo até quando meu irmão vai pro Supermercado!

Na sala de aula ficamos emudecidos. No silêncio. Todos pensavam e refletiam por algum momento. Quebrei o silêncio. E agora, novamente, afasto o branco do papel e uso da palavra, parafraseando e refletindo sobre o pensamento do romancista James Baldwin, o seguinte:

Somos conduzidos pelo mercado da mídia e pelo consumismo para acreditarmos numa realidade inexistente, que nos prende ao que gostaríamos de ser e não ao que realmente somos, e no que, talvez, nunca poderemos ser o que gostaríamos de ser. Não pretendo ser pessimista, ou desmotivar ou de desistir de ficarmos tentando ser o que queremos ser. Não é nada disso. Mas, precisamos enxergar a realidade, refletir e transformá-la. Como já contou Eduardo Galeano, a utopia serve para caminhar e não para desistir.

O pensador francês Guy Debord definiu o “espetáculo social” como o conjunto das relações sociais mediadas pelas imagens. Para ele, a produção tendenciosa de imagens como instrumento de exercício do poder e dominação existe em todas as sociedades onde há diferenças de classes sociais, isto é, onde há desigualdade / Foto: Divulgação

Nesse momento político, em face de uma tão frágil docilidade com o próximo, não podemos diminuir ou perder totalmente nossa capacidade de enxergarmos o mundo como ele é: sempre diferente do que nós somos e nem por isso merecedor da barbárie da violência.

Existe um perigo real de morte no ar – para diversas minorias. Ser homossexual nesse mundo é muito difícil, pois, conviver com o medo do mundo ao seu redor, de ser agredido psicologicamente, moralmente, fisicamente e até ser assassinado. É um terror social e não paranoia. Da mesma maneira, também é assustador sermos mulheres, negros, pobres, indígenas, estrangeiros. Chegamos a um momento delicado onde há um aparente medo em sermos gente.

Difícil afirmar que essa ou aquela religião odeia os “diferentes”, mas temos muitos religiosos que não aceitam o homossexual em suas igrejas ou reuniões – por exemplo. O Papa Francisco tenta neste momento quebrar esse paradigma do ódio.

Difícil afirmar que os empregadores odeiam os “diferentes”, mas poucos empregam homens e mulheres transexuais que desafiam a barreira conceitual do gênero.

Difícil afirmar que nossa população mesclada odeia os “diferentes”, mas não faz tanto tempo assim que Brusque ostentava em seus postes mensagens de ódio contra nordestinos.

Difícil afirmar que nossa política odeia os “diferentes”, mas perguntamo-nos: qual a efetiva representatividade de mulheres, de mulheres negras, de mulheres negras e gays, de mulheres negras e gays e pobres?

Na construção de um mundo melhor, mais justo e fraterno, muitos e muitos se sacrificaram. Pagaram um alto preço. Preço esse esquecido, invisível, que nem querem imaginar. Pagaram o preço com a própria vida e, no entanto, não é isso que observamos ser incitado e resgatado nesse momento?

Na foto, a ativista pelos direitos civis Marsha P. Johnson, conhecida como uma defensora dos direitos dos homossexuais e uma das figuras proeminentes da revolta de Stonewall em 1969. Encontrada morta a pancadas na cabeça em 1992, seu caso ainda não foi resolvido / Foto: Divulgação

Muitos não se importam com o tratamento subumano aos homossexuais porque neste caso escapam a essa interseccionalidade. Porém, não sejamos cegos diante o retrocesso e encaremos a realidade: este é o momento em que as ditas minorias devem unir mãos e resgatar laços. Não façamos a divisão excludente e preconceituosa de nossos afetos, pois esse é o campo ideal para a manipulação política e para a instauração de um governo de “vida de gado”.

Muitos não se importam com o tratamento desumano e violento, ponto final. Não se importam caso a água não atinja sua própria perna, caso não seja sua vida a ser violentada. Dizem que se importam, mas nada fazem para transformar a situação: estão pensando apenas na sua segurança e na força da própria fechadura, do próprio portão, na segurança única e exclusivamente do “seu terreno”.

Estamos de braços cruzados na nossa caverna. Assistindo. Acorrentados como no mito de Platão. Enquanto isso um pai sofre sozinho, em casa, todos os dias, cada vez que seu filho vai para a rua, com medo do mundo, com medo de muitas pessoas que, com seus discursos de ódio, possam machucar seu amado filho. Se você nunca sentiu medo de fazer compras, se consegue sentir prazer de andar livremente pelas ruas e consegue perceber como isso faz bem – sorte sua: mais um motivo para querer esse mesmo “privilégio” para todas as classes de gente.

Precisamos nos humanizar verdadeiramente em favor da única e infinitamente valiosa pessoa humana. Mas humanizarmo-nos de verdade, não como um instinto de pertencimento em redes sociais ou rodas de conversa – mas como principal qualidade ética daquele que vive em grupo. Glucksmann nos diz:

“Inumeráveis instintos de ódio e violência permanecem adormecidos nos corações humanos. Os ensinamentos recebidos e os preceitos morais dificilmente conseguem controlá-los. De que devastação não são capazes essas forças elementares a partir do momento em que – em lugar de se opor ao impulso provocado por elas – a justificativa moral e a sanção ideológica surgem para lhes dar força e estimular mais do que detê-las? Assim também, por meio de reviravoltas desconcertantes, os homens, sempre souberam reverter seus mais sublimes evangelhos em benefício dessas paixões.”

[L. Poliakov, “O Breviário do Ódio” in: ‘O Discurso do Ódio’, de André Glucksmann]

Que saibamos amar melhor, e além.

P.S. Texto escrito em defesa de Paulo e seu pai.