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Segundo turno: A ética da solidariedade

Recentemente, entre 25 e 29 de setembro de 2018, participei do XI Colóquio Internacional Michel Foucault, evento sediado neste ano pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC em homenagem ao filósofo e teórico social francês. Nele, reuniam-se alguns dos mais célebres pesquisadores de universidades brasileiras, francesas, argentinas, entre outras.

Em determinado momento, em palestra de Guillaume Le Blanc da Université Paris VII Diderot – intitulada “Seria possível uma história da liberdade?”, reflexões acerca do momento imigratório europeu suscitaram também questionamentos sobre nosso tempo político, principalmente sobre o clima social que se instaurou em terras brasileiras com a polarização infundada entre candidatos chamados fascistas e uma parte da população que clama por avançarmos política, social e eticamente, ao contrário de já irmos nos acostumando com retrocessos na pauta pública da agenda dos Direitos Humanos.

As reflexões acerca das teorias sobre o cuidado de si de Foucault rondaram uma pergunta ainda pertinente nesses tempos de segundo turno: pode a solidariedade ao próximo ser considerada um delito e/ou uma aberração ética?

Repito: em casos desumanizados, como em apoios à repressão, à tortura, à misoginia, à homofobia, ao racismo, ao classicismo, ao repúdio às minorias, ao cancelamento de direitos humanos básicos, que tipo de sociedade e pensamento construímos quando afirmamos apoiarmos este ou aquele candidato?

Ainda repito: em face de uma escolha imposta, onde finalmente devemos nos posicionar politicamente, mas também eticamente, humanamente, socialmente, afetuosamente, complexamente e globalmente, por que – senão por estarmos moralmente fracos e eticamente incompletos – apoiaríamos alguém que afirma a solidariedade ao próximo como uma aberração aos direitos de poucos, como aquilo que a própria sociedade (composta e formada por diferenças e diferentes corpos) deve combater de dentro?

A resposta é: estamos utilizando mal as leis, as proposições, as teorias e, finalmente, o pensamento. Andamos pensando pouco e esta eleição se mostra como o tapa na cara e o soco no peito que nos escancara como fomos incapazes de construir uma população apta a compreender fatos complexos além da cortina cega da mídia, do humor duvidoso dos memes e dos recortes tendenciosos das correntes de whatsapp.

No documentário Maioria Absoluta (1964 – disponível no Youtube), o diretor Leon Hirszman dá voz aos analfabetos, mostra as condições de vida dos camponeses impedidos de votar e denuncia a desigualdade social no país. Com o advento do golpe militar, o documentário ficou proibido até 1980, período em que foi exibido fora do Brasil / Foto: Divulgação

Ainda na palestra, expôs-se uma verdade dolorida: o governo liberal e suas técnicas de convencimento (propondo o privilégio de uns – os confortáveis, negando os direitos de outros – os precários) demonizaram a solidariedade a ponto de não mais nos enxergarmos como “nós, o povo”. Neste momento, enxergamo-nos como “nós, os ansiosos por qualquer solução e por qualquer herói imediato”.

Na falta de um pai supremo, órfãos de certezas mas também de livros e da filosofia necessária para tomarmos uma decisão tão drástica, aceitamos versões genéricas de dominação e barbárie. Não nos enganemos: apesar de haver um lado que prega verdades menos vergonhosas e dolorosas, não há salvação imediata.

Abordando Foucault em relação ao cuidado de si, a fala da academia parisiense ressoa ainda nesses tristes trópicos sul-americanos: cuidar de si significa saber-se ético e resistente, saber-se forte frente à própria potência da vida e dos discursos, saber-se criativo quanto à forma de entender a si mesmo e ao outro em uma cadeia de relações que chamamos de sociedade.

É (deveria ser) natural pensarmos que a sociedade se faz da diferença. Dentro dessa diferença existem as relações violentas (os assaltos, as guerrilhas, as torturas, o preconceito, o ódio), mas também é dentro desse mesmo campo social que se formam os afetos transformadores (como o amor, a solidariedade, o auxílio, a compreensão, o respeito, o perdão, a poética). Agora, precisamos dosar com cautela a fácil fuga de tomar o outro como inimigo político, público, humano e ético.

Se estamos dispostos a esquecermos de nossa “liberdade de si” para embarcarmos nessa fantasia absurda da volta à repressão é porque fomos feridos por nossa própria liberdade. Nesse sentido, escolhe o opressor quem não conseguiu aprender a evoluir o espírito. Escolhe um líder quem se contenta em permanecer subalterno. Escolhe a coleira e o prato raso de ração quem se contenta em repetir a história do cachorro magro sul-americano.

O geógrafo brasileiro Milton Santos dizia: Existem apenas duas classes sociais, as do que não comem e as dos que não dormem com medo da revolução dos que não comem / Foto: Divulgação

Presos a essa ética do subalterno que nos persegue como o país explorado e mal cuidado que somos, pedindo pela volta do mal supremo – da repressão e violência para o outro (que religiosamente chamamos de “o próximo”, nunca de “nós mesmos”), mostra-se a impossibilidade humana, criativa e subjetiva de entender a diversidade, os outros mundos e as outras realidades como partes fundamentais do campo das trocas em sociedade.

Podemos exigir mais segurança, menos corrupção, melhores divisões de investimentos, maior progresso. Claro que sim. Mas quem pede por esse “pacote eleitoral” a partir das vidas alheias esquece que sua própria vida pode tornar-se, a qualquer momento, também precária.

Esquece-se do contrato ético que surge no ato da concepção da vida, quando adentramos esse mundo pelo nascimento e do qual surgem relações obrigatórias para o avanço rumo a um futuro que se pareça menos com nosso trágico passado. A esse contrato forçado – o da diversidade de corpos e sujeitos no campo social – a filósofa Judith Butler chama de Convivência Compulsória: possuímos uma obrigação com o outro porque estamos todos nós de passagem por esse mundo que já existia antes de nosso nascimento e que continuará a existir depois de nossa morte. Salvemo-nos todos, então, do egoísmo míope que recai sobre esses tempos eleitorais.

Na dúvida, não esqueçamos da ditadura de 1964 que durou longos 21 anos. Não esqueçamos de Herzog. Não esqueçamos de Marielle. Não esqueçamos das sufragistas. Não esqueçamos da tortura física e psicológica. Não esqueçamos que a ética só existe na prática. Não nos esqueçamos da fragilidade de nossas certezas – mas da potência de nossos afetos.

Para o filósofo e professor chileno-brasileiro Vladimir Safatle, o problema político atual é uma total falta de sensibilidade e criatividade ao olharmos para esse “outro” / Foto: Divulgação

Sobre ela, a ética, Foucault ainda a denominava “a estética da existência”, no sentido de representar tudo aquilo que sentimos, pensamos e todas as nossas atitudes que nascem de um campo de valores, de constituições discursivas interiores e anteriores ao próprio ato (de votar, de odiar, de respeitar, de ponderar).

Isso significa dizer que, se percebemos a polarização no momento eleitoral, é porque “nós, o povo” já nos polarizávamos anteriormente. Já éramos dois: aqueles da inquisição e aqueles da humanização. Frente ao medo, nossas chagas tornaram-se mais latentes.

Como afirma a teoria foucaultiana, a conduta ética não representa um “estar ou não estar”, mas um “ser ou não ser”. Desta forma, não existe um “meio ser”. Ou você é ético com a diferença ou é antiético. Quem não possui essa estética interior, de enxergar o mundo de maneira poético-política, inventiva, criativa, imaginativa, muitas vezes caótica e imprevisível, não consegue construir ética do lado de fora do corpo.

Finalmente, a palestra a qual me referi no início desse artigo indagava: que tipo de sociedade foi construída às nossas custas que faz com que a fraternidade e o amor ao próximo pareçam atos de resistência? E nesse sentido, quando se resiste fortemente à compreensão da diversidade que anda sobre o mundo, quando se fecha os olhos para as formas múltiplas de vida, quando se afirma um único modo de existir, resiste-se a quê?

Mario Sergio Cortella é um filósofo, escritor, educador, palestrante e professor universitário brasileiro que propõe um dilema ético onde frente a novos desafios, devemos nos questionar: Quero tomar esse atitude? Posso tomar essa atitude? Devo tomar essa atitude? / Foto: Divulgação

Sejamos, nesse momento, sujeitos políticos ativos. Não programáticos nem doutrináveis por qualquer manipulação extremista e provisória. Sabemos, pela comprovação histórica, que decisões políticas apressadas e que cegam a população porque instauram medo e urgências são estratagemas que beneficiam justamente as únicas pessoas que consideram sujeitos: os poucos, os de cima, os privilegiados.

Quando a ordem do dia é da obediência cega ao ódio, à violência e à segregação populacional, devemos encarar a desobediência como um deslocamento político. Afinal, como nos tornaremos lares para novas experiências de progresso se construirmos a casa em cima de terrenos retrógrados e que livremente afirmam e prometem a exclusão do próprio povo?

Ao deixarmos que o medo faça a colonização das nossas mentes, somos colonizados pelo quê? Ao deixarmos que nos governem sob o braço rígido da opressão, esperamos o que além de um futuro oprimido? E principalmente: queremos uma sociedade baseada em hospitalidade ou hostilidade? Que saibamos decidir com quais materiais (tiros ou tijolos) será feita nossa nova casa.