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Segundo Turno: É bom ser mal?

Recentemente tive uma experiência que poderia classificar como oriunda de certa banalidade do mal. Tomo por emprestado este termo, cunhado por Hannah Arendt, ao descrever a normalidade com a qual um dos generais de Hitler, Adolf Eichmann, encarava seu julgamento, pelos atos cometidos nos campos de concentração durante o holocausto.

Na obra, a autora descreve a expressão de normalidade de Eichmann frente às perguntas de seus julgadores, justificando suas ações como meras ordens do Estado. Arendt chega a sugerir em sua obra que Eichmann cometeu suas atrocidades não por causa de um ódio contra os judeus, mas por se tratar de um mero burocrata.

Após assistir ao julgamento, a filósofa chegou à conclusão de que o mal não provém da malevolência ou do desejo de fazer o mal. Ela sugere que os motivos pelos quais as pessoas cometem atrocidades é que elas sucumbem a falhas de pensamento e julgamento. Sistemas políticos opressivos são capazes de se aproveitar de tais tendências a falhar, possibilitando que pareçam normais certos atos que possivelmente consideraríamos impensáveis, repugnantes, desumanos.

A ideia de que o mal é banal não priva os atos maléficos de seu horror. Em vez disso, a recusa em ver as pessoas que cometem atos terríveis como monstros traz esses atos para mais perto da nossa vida cotidiana, desafiando-nos a considerar o mal como algo de que todos somos capazes.

Não é nenhuma novidade o conhecimento dos fatos ocorridos durante a Segunda Guerra: experimentos médicos, torturas, encarceramentos e mortes em nome de uma verdadeira higienização da nação, pelo entusiasmo de um líder com discurso nacionalista e de prosperidade para um país em crise; um estadista que tornou pública uma opinião da maioria; alguém cuja habilidade retórica tocava os ouvidos, enchia os olhos e penetrava nos corações de seus seguidores – que fique clara a legitimidade do movimento, perante aspectos jurídicos; democracia na sua mais pura expressão.

E agora, voltemos ao mal banal. Entre os intervalos de meus estudos em Filosofia, ganho a vida como motorista de Uber. Num domingo qualquer, recebo em meu carro um típico pai de família e sua filha, ele beirando os quarenta anos, ela entre doze e quatorze. Como padrão de qualidade de atendimento, a empresa nos encoraja a interagir com os passageiros para tornar a viagem uma experiência única – e o que seria algo natural passa a ser institucional.

Iniciada a conversa, o pai de família muito simpático, desses “homens de bem”, vê um pequeno grupo de pessoas em situação de necessidade, consumindo crack. Naturalmente lamenta a cena numa clara demonstração de solidariedade de sofá. Em certa altura do caminho, ele ensaia alguns pensamentos sobre a questão da imigração na Europa.

No documentário “Não existe lar se não há para onde ir” (2018), do artista chinês Ai Wei Wei, é retratada a crise global dos refugiados. Ao longo de um ano, o diretor acompanhou movimentos migratórios em 23 países, incluindo França, Grécia, Alemanha, Iraque, Afeganistão, México, Turquia, Bangladesh e Quênia. Ele retrata as causas que levam milhões de pessoas a abandonarem seus países de origem, como a guerra, a miséria e a perseguição política, refletindo sobre as dificuldades encontradas na busca por uma vida melhor / Foto: Divulgação

Quando subimos a rodovia em direção ao destino, que deveria levar, pelo menos, uns trinta minutos, pergunto sobre seu sobrenome, que constato ser de descendência italiana. Ele confirma e, para continuar sendo profissional, digo que também sou de descendência italiana: fingimos descaradamente uma inexistente intimidade.

Logo em seguida ele me pergunta se alguma vez eu havia tentado a cidadania italiana e respondo que não. Por ele mesmo o assunto é continuado, afirmando que agora era um período difícil para consegui-la, pois existe uma crise gravíssima de imigração na Europa. Na mesma hora penso, em voz alta, sobre a situação dos imigrantes da Síria, e de todos os países envolvidos nos conflitos que fazem com seus habitantes fujam da morte certa.

Ainda tentando fingir sabedoria sobre a natureza do homem, aquele exemplo de pai de família classe média, nem rica e nem pobre, mas no limbo do mundo e distante suficientemente dos problemas sociais, começa a insistir:

“Pois é, mas veja bem, nosso país também está sofrendo com a crise da imigração. Olhe a Venezuela e os estados do Norte, conflitos e mais conflitos, doenças, a polícia tendo que desapropriar, etc”

Interrompo-o com um comentário de que nem imagino o sofrimento que estas pessoas estão passando. Pois do Sul do país não é possível ter uma real noção das mazelas sociais de outras regiões.

“Pois é, mas nem todo imigrante é bonzinho, estão vindo muitos vagabundos pro nosso país”

Percebendo o tom negativo que a conversa estava tomando, tomei uma atitude que julgo ser a mais adequada em situações como esta: o sarcasmo como forma de sobrevivência. Conduzo então a conversa de volta à nossa descendência pura, como povo cheio de cultura e santidade italiana.

Então, exaltando nossa nacionalidade sacra, digo que tanto italianos, como alemães, ou mesmo outros povos, durante a Segunda Guerra, também foram imigrantes; que também traziam doenças, mazelas sociais, conflitos com os que aqui já habitavam. E ele, para não perder sua postura de homem viril perante sua filha, de imediato retruca:

“É, mas têm imigrantes e imigrantes. Olha, esses africanos e esses portugueses, parece que vivem com preguiça! Ô povinho que não gosta de trabalhar! Já os alemães e italianos não. Alemães são extremamente organizados; Italianos muito trabalhadores”

E com o sarcasmo ligado, encorajo a conversa, dizendo que provavelmente a conduta de italianos e alemães é consequência de uma vida cristã, pautada na busca da Graça Divina, nesta ou na outra vida, e que a prova disso se daria pela prosperidade expressa no árduo trabalho. Ele, mais uma vez fingindo sabedoria sobre o mundo, concorda entusiasmado e a conversa volta a ter ares de uma intimidade débil e falsa, mas, ainda assim, amigável.

Eis que a boca incessante e o pensamento raso encontram ouvidos amigáveis que concordam em silêncio. Ao deixá-los no restaurante de destino, me despedi e eles também. Ele, em especial, muito satisfeito e eu profundamente irritado.

Em 1978, Chico Buarque cantava: “Pai, afasta de mim este cálice / de vinho tinto de sangue”, uma óbvia alusão à censura da ditadura militar brasileira / Foto: Revista Contigo

Nosso país atravessa uma onda de imbecilidade travestida de sabedoria, muito por conta de notícias tendenciosas e a latente época de eleições presidenciais, inflada com discursos retóricos e ódio em forma de moral e bons costumes.

Em um breve estudo sobre cultura, tive a felicidade da leitura de algumas obras como “Casa Grande & Senzala” de Gilberto Freire; “O Povo Brasileiro” de Darcy Ribeiro; “Cultura: um conceito antropológico” de Laraia.

Nestes estudos, com seus enfoques específicos e por vezes divergentes em alguns pontos, algo se mostra homogêneo: a origem dos povos da Europa. A qual remete a uma verdadeira miscigenação de etnias, costumes, religiões, leis. Resumindo, a descendência italiana pura, que o tal pai de família se orgulha, possui muito de povos do Oriente Médio, misturado a pigmeus e tantos outros.

O esquecimento histórico no Brasil é causa e sintoma dos problemas sociais. Causa porque só nos deixamos tocar por mazelas sociais a partir do momento em que ela é real, ou seja, que ocorre com alguém que nos é próximo.

Sintoma porque esquecer nossas origens “impuras” implica em crer numa origem divina, externa a nós, limpa, sem doenças, sem fome, com vasta beleza, sem negros, sem vagabundos, homossexuais, vidas precárias, mulheres insubmissas, corpos outros – um verdadeiro mundo ideal e perfeito na utopia de quem preferiria ter nascido sozinho no mundo. Não nascemos.

O esquecimento histórico no Brasil é causa e sintoma dos problemas sociais / Foto: Divulgação

Tornando-se divino, o homem branco, sustentado pela metafísica branca, acredita-se numa concepção linear sobre o desenvolvimento cultural, numa perspectiva bem darwinista: todas as etnias são iguais, mas existe uma diferença cultural entre o Europeu e o Africano, pois o Europeu melhor se adaptou à vida em sociedade.

A sutileza desse tipo de afirmação, na época sustentada por grandes nomes da ciência, é quase angelical, pois reconhece os negros, árabes e orientais como iguais ao branco. Porém, é natural inferir, para um homem médio (esmagadora maioria), que o branco é superior, porque melhor se adaptou, por isso mais avançou. E claro que jamais se deve mencionar sobre as explorações, colônias, massacres, conquistas por expansão de poder. A conveniência deste tipo sutil de violência, o esquecimento histórico, leva à banalidade do mal de nossos dias: oremos muito, então, porque estudar atualmente parece “coisa de comunista”.

É engraçado como esse tipo de afirmação tem duplo sentido num mundo dividido em direita e esquerda – um é subversivo, ardiloso, pois está encalacrado nas universidades influenciando nossos futuros professores e alunos; o outro polo está pautado na Verdade Única já descoberta e assentada, portanto, seu verdadeiro caminho.

Um lado estuda e o outro segue, reagindo a tudo que não é o caminho correto, certo, imutável, puro – mais fácil e acomodado em seu pensamento automático. Dividir o mundo em dois é inteligente, pois um verdadeiro político divide o mundo entre instrumentos e inimigos.

Em seu livro de 1963 – Eichmann em Jerusalém – a filósofa política alemã Hannah Arendt reflete sobre manipulação discursiva e a fragilidade das massas frente ao mal banal / Foto: Divulgação

Recentemente, os holofotes catarinenses se voltam para um empresário da região, que tem por característica a quantidade em suas expansões, exercendo seu direito de prosperidade pelo esforço puro. Mais notável do que seu sobrenatural empenho ao labor, é a forma como tem reagido às atuais discussões políticas, em que sofrera uma autuação do Ministério Público por coação dos funcionários a votarem em seu candidato favorito.

Ao receber alguns funcionários de tal empresa em meu carro, não perco a oportunidade de uma exclusiva, perguntando a opinião destas pessoas sobre o ocorrido. E mais uma vez me deparo com a banalidade com que tais questões são tratadas:

“Ele não fez nada demais, apenas reuniu os funcionários em horário de trabalho para um ato cívico (cantar o hino nacional) e para falar da preferência dele pelo candidato, nada demais. Isso é coisa do Ministério do Trabalho que quer arrecadar dinheiro de quem tem”

A esta altura, a banalidade com que questões como esta são tratadas está mais do claro, mas vale a pena o reforço da propaganda da obra de Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala.

Em certo trecho, Freire reflete acerca da influência do Senhor da Casa-Grande sobre seus súditos, e que no momento de transição do modo de produção econômico e político, este Senhor, ao perceber que estava perdendo capital e propriedade, não deixou de exercer esta mesma influência, só que agora de forma política, obrigando seus escravos ou mesmo pessoas livres que ainda dependiam deste a votarem em seus sobrinhos estudados, seus filhos advogados ou genros com carisma lançados à política. Em História e Antropologia, nada é coincidência.

Freire demonstra através de seu método científico, cartas, recortes de jornais da época, declarações públicas, livros de rigor filosófico e também de futilidades, como receitas e dicas de amor. Nestes documentos, ao analisar sobre a arquitetura da época, o autor percebe o tamanho da influência da Casa-Grande, mesmo sobre a Igreja: em que as Igrejas e pequenas capelas eram construídas aos moldes da Casa-grande, e não o contrário.

Se este tipo de prova não causar ao leitor ao menos um mal-estar, tem-se aí a prova posta de que a banalidade amorteceu as mentes, a moral e nossos próprios códigos de conduta. Atualmente, parece fetiche sermos banalmente maus.