Se eu fosse livre: a identidade como cegueira em massa
O jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano disse uma vez: vivemos em plena cultura de aparência, o contrato de casamento importa mais que o amor, o funeral mais que o morto, as roupas mais que o corpo e a missa mais que Deus. Paralelamente a essa passagem, a sociedade em que vivemos nos escraviza numa série de comportamentos de um grande jogo, onde novas e frívolas identidades são fabricadas e impostas sem que percebamos.
É justamente a palavra “Identidade” que dá título ao livro de 1999 do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, quando afirma: as identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas.
São essas identidades impostas que são percebidas por diversos cenários e comportamentos homogêneos, ideias preconcebidas, entre outras uniformidades. Assim, muitas pessoas em diferentes contextos não exercem seu pensamento crítico e nem refletem a autenticidade de seus comportamentos – muitas vezes por mero desconhecimento de si.
A necessidade de pertencimento pode ser percebida em diversos contextos e há alguns exemplos mais prosaicos e outros mais danosos. Entre os principais, podemos perceber a crença em discursos autoritários e clichês que refletem diretamente na ignorância de um grande e vitimado público, às vezes trazendo consequências drásticas e irreversíveis.
Assim acontece com correntes fundamentalistas que sugerem determinadas “verdades de ódio” aos indivíduos cerceados, não dando margem alguma para quaisquer questionamentos e reflexões. Também pode-se refletir sobre a normatização de determinados comportamentos autoritários que interferem na genuinidade das alteridades.
Bauman prossegue afirmando que estar total ou parcialmente deslocado em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos – sem o crivo normalizante), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora.
Para o autor, todas as culturas conhecidas, em todos os tempos, tentaram, com diferentes graus de sucesso e insucesso, estabelecer a ponte entre a brevidade da vida mortal e a eternidade do universo. Cada cultura ofereceu uma fórmula para essa proeza de alquimista: transformar substâncias primárias, frágeis e transitórias em metais preciosos capazes de resistir à erosão e de ser duradouros. É esse eterno flutuar sem chão que faz com que as pessoas avidamente busquem por identidades ao longo de suas vidas.
Há 50 anos, Clarice Lispector escreveu uma crônica no Jornal do Brasil chamada “Se eu fosse eu”, em que diz:
“Se eu fosse” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. Experimentaríamos, enfim, em pleno a dor do mundo, mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar.
Ouça a atriz Aracy Balabanian declamando o texto completo:
Nessa crônica, a escritora nos faz refletir sobre como seria se fôssemos verdadeiramente nós em diversos momentos de nossa vida. Quando fala do perigo do desconhecido, Clarice corrobora a mesma ideia de Bauman de uma experiência desconfortável.
Percebo que tanto Bauman quanto Clarice falam do “desconhecido desconfortável e perturbador”, não se referindo a identidades genuínas. Partindo de uma visão estruturalista da sociologia, percebe-se em ambos os casos a compreensão de um sujeito que se molda a partir do contato com o campo social, sem razão ou missão anterior à existência terrena.
Com base no pensamento crítico, percebe-se que muitas vezes (mais do que gostaríamos) criamos identidades aparentes a fim de sermos “normalizados”, nos sentirmos acolhidos, aceitos e pertencermos a um determinado grupo. Entretanto, a prisão da robotização de pensamentos não fundamentados requer uma urgência no discernimento que nos leva a outro ápice, do pensamento crítico e lúcido, a fim de refletirmos sobre nossas idiossincrasias.
O exercício da atenção consciente sobre comportamentos nocivos no cotidiano é primordial para que o pensamento reflexivo e a existência igualitária prevaleçam.
Inicialmente, essa criticidade pode ser uma experiência inusitada, mas certamente o valor da libertação é maior que do desconforto inicial. Finalizo com uma analogia de uma pessoa enferma que necessita de cirurgia. Certamente o sentimento e a ideia do procedimento são perturbadores. Mas a busca da cura de uma doença, assim como a emancipação de comportamentos normativos, são fundamentais para a sobrevivência.
Que possamos todos nos curar dessa aparente cegueira em massa.
Leia abaixo a crônica completa de Clarice Lispector, intitulada “Se eu fosse eu”, publicada pela primeira vez Jornal do Brasil, em 1968:
Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas e mudavam inteiramente de vida.
Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua, porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho por exemplo, que por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo que é meu e confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.