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Eu vou contra a vontade, juro – o apagamento de mulheres na literatura

Peço vênia à poeta Safo para iniciar essas linhas:                  Não minto: eu me queria morta.                  Deixava-me, desfeita em lágrimas                  Mas, ah, que triste a nossa sina!           […]

Peço vênia à poeta Safo para iniciar essas linhas:
                 Não minto: eu me queria morta.
                 Deixava-me, desfeita em lágrimas
                 Mas, ah, que triste a nossa sina!
                 Eu vou contra a vontade, juro
                 Safo

Os versos do poema fragmentado A Àtis, escrito pela poeta da Ilha de Lesbos, quebram a
expectativa do leitor fundindo uma postura de suposta resignação com outra incitadora,
desafiadora.

Safo, a primeira poeta de que se tem notícia, é representativa para pensar em um
fenômeno de violência sofrida por mulheres de forma secular: o apagamento da autoria
feminina.

Que as mulheres têm sido vítimas de rasuras, por vezes irreversíveis, é uma afirmação
incontestável. Discutir se “há mulheres apagadas na literatura” seria entrar em um
argumento vão. A respeito desta temática, a única conclusão possível é a de que “sim, há
mulheres apagadas na literatura”.

Penso, pois, que podemos dar um passo adiante e investigar alguns dos possíveis e
caleidoscópicos motivos que favorecem o aparecimento e continuidade desse fenômeno. E,
em outro momento, ofereço o vislumbre de descontinuidade.

“Safo e Erinna em um jardim em Mytilene” por Simeon Solomon (1864)

Para isso, recorro à imagem do eclipse, muito apropriada enquanto alegoria para se pensar
o processo de obscurecimento de algumas obras de autoria feminina e a sua revisão,
descontinuidade.

No seu sentido imagético, o eclipse nos fornece uma paisagem de contingências que é,
também, efêmera e passível de desconstrução. Da antiguidade até a idade média, o
fenômeno era atribuído como um evento aterrador no imaginário coletivo de muitas culturas.

O medo e o horror pelo desaparecimento da luz solar eram creditados a um suposto castigo
ou fúria de alguma divindade e a iconografia cristã demonstra como ao longo dos séculos o
evento celeste vem sendo representado e reputado como um castigo divino, um mau
agouro ou um emissário de calamidades que estavam por vir.

Diametralmente proporcional é também o deslumbramento do espectador que dirige,
momentaneamente, o olhar ao céu, procurando entender o fenômeno enquanto os astros se movem em seu tráfego cósmico.

De forma similar a autoria feminina vem sendo caracterizada como um acontecimento
contraditoriamente aterrador e de fascínio. Há que se questionar, no entanto, o que tornou o ofício da escrita feminina tão obsceno? Quais foram os dispositivos que propagaram essa
concepção?

Houve, por longo tempo, uma hierarquização do papel subalterno da mulher em relação ao
homem. A elas, o espaço econômico e limitado do lar era predestinado; para eles, o
domínio do mundo, do pensamento e da consciência era expandido e estimulado. As
mulheres que se colocavam na periferia dessas representações hierárquicas sofriam
reveses.

E uma mulher que extrapolava e refutava o ascetismo do lar provocava, tal como um
eclipse, horror e fascínio. Por esta razão, na Idade Média, a escrita e mesmo o acesso ao
conhecimento lhes era vedado e censurado. Poucas foram as mulheres que cindiram com
esses padrões e esgueiraram no mundo do conhecimento.

Um ato de profanação como o que Sor Juana Inés de la Cruz (1651-1695), uma das
primeiras intelectuais e poetas latino-americanas, fez ao se tornar dama de companhia da
Vice Rainha da corte Leonor Carreto e, posteriormente, entre as paredes do convento da
ordem das Carmelitas onde escreveu poesias, sonetos e peças teatrais.

 

Retrato de Sor Juana Inés de la Cruz por Miguel Cabrera (1750)

É sabido que a verdade histórica é parcial e estruturada sob a ótica do vencedor, com um recorte quase sempre masculino. Recorte que pode ocorrer sob a forma de controle ao acesso de manuscritos originais ou alterações forjadas nas obras de escritoras.

Ted Hughes eliminou treze poemas que considerou “pessoalmente agressivos” e incluiu outros treze, a maioria escrita em 1963, semanas antes do suicídio de Sylvia Plath e que a autora não incluiu em Ariel por acreditar que se tratavam de poemas para um terceiro
volume.

Episódios como este – que não são inaugurais – ilustram como o processo de apagamento se estabelece. As obras das poetas Elise Cowen e Ana Cristina Cesar passaram por editorações similares. Enquanto Elise ainda se encontra sob as sombras do eclipse, para Ana C. o fenômeno parece ter se dissipado, em grande parte devido ao esforço de revisão de sua obra pela academia iniciado nos anos 1990.

No entanto, ainda soam inéditos ao grande público nomes como Zulmira Ribeiro Tavares, Vera Pedrosa, Isabel Câmara ou Leila Míccolis, que também circularam por aquele movimento. Esses artifícios utilizados como tentativa de silenciamento são resultado de um processo violento de dominação marcado por sociedades patriarcais.

Desse modo, não é difícil reconhecer de que lugar nascem e ecoam certos silenciamentos.
Nos jogos de poder por trás do discurso histórico, as mulheres foram delimitadas na fronteira do obscurantismo da memória. A nós, chegam os ecos de suas vozes por longo tempo emudecidas para além daquelas que jamais chegamos a conhecer.

O desequilíbrio entre gêneros no exame das obras produzidas por mulheres como Alejandra Pizarnik ou Silvina Ocampo, tanto pela crítica literária quanto pelo público (que não tem relação intrínseca com a sua qualidade ou proficuidade), expõe o complexo processo de
apagamento histórico das mulheres na literatura.

Mary Ann Evans precisou recorrer ao pseudônimo George Eliot para dar credibilidade aos seus trabalhos. Gilka Machado que, no Brasil, escreveu sobre o erotismo e o desejo feminino em uma época em que as mulheres eram responsáveis pelo decoro familiar, também mascarou a autoria de seus poemas com pseudônimos, explicando como o
processo de apagamento se revela de forma sutil.

Há ainda episódios mais problemáticos que tentam obscurecer mulheres quando essas mal saíram das sombras. Carolina Maria de Jesus passou pelo crivo de parte da crítica literária elitista brasileira em cerimônia recente (2014) quando foi homenageada pela Academia
Carioca de Letras, tendo a qualidade de seu trabalho posta em dúvida.

Muitas mulheres tiveram as suas biografias arranhadas, seja por omissão ou por
profanação intencional de suas imagens e as narrativas que nos chegam são geralmente
cruéis e/ou extremas. São retratadas, entre outras coisas, como loucas, desajustadas, putas e diabólicas.

Além disso, quando se fala a respeito de uma literatura produzida na América Latina, o
processo de apagamento parece ser ainda mais obscuro, com sombras mais vigorosas
sobre as essas produções.

No entanto, se há descontinuidade de luz, quando se fala em eclipse, vislumbra-se sempre
a ideia de retorno, de finitude das trevas conspiratórias impostas à autoria feminina.

Safo, Gilka Machado, Ana Cristina Cesar, Alejandra Pizarnik, Silvana Ocampo, Elise
Cowen, Maria Carolina de Jesus, Maria Firmino dos Reis, foram ou ainda são vozes
emudecidas que demandam ser retiradas do obscurantismo literário que lhes foi imposto de
modo tão violento.

Embora não haja restituição apropriada para as décadas, séculos de sombras em que suas
obras permaneceram, a dívida é demasiada e a reparação é, sobretudo, urgente.