Qual o nosso papel, nós que vivemos como os explorados do mundo? Nossa contribuição deve ser eliminar os fundamentos do imperialismo: nossas nações oprimidas, de onde apenas querem extrair capital, matéria-prima e mão de obra, afundam-se na dependência pelo que se chama de primeiro mundo. O real objetivo da nossa estratégia, então, é fazer todo o possível para que se atinja a liberação real dos nossos povos.
Che Guevara, Mensagem aos Povos do Mundo Através da Tricontinental (1967)

Há quase 70 anos, a Conferência de Bandung marcava o que se considera um primeiro marco rumo aos estudos decoloniais. Abrindo espaço para a fala e experiência de países como o Egito, a Índia e a Indonésia, a reunião gerava um movimento de não-aliança no contrafluxo dos chamados países de primeiro e segundo mundo – divisão pautada pela Revolução Francesa, dividindo estados-nação entre os principais sistemas políticos da época: o capitalismo, o socialismo e o resto.

Este resto, que chamou-se terceiro mundo, é apontado pela Conferência Tricontinental de Havana em 1966 como a junção das histórias, percepções e movimentos culturais da África, Ásia e América Latina. Ambos os termos – decolonial ou tricontinental – fazem parte de uma cultura alternativa, um novo sistema epistemológico que busca a libertação política, cultural, artística e econômica do que chamou-se de “estudos de subalterno”.

Por que, então, o olho (a mão, a mente, o corpo todo) deveria debruçar-se sobre as artes e as literaturas da América Latina?

Primeiro, para que se estabeleça um movimento de re-legitimação. Pautando o gosto da população sob a cultura sequencial e escassa que advém dos processos de imperialismo, colonialidade, e industrialização, a cultura de massa que se distribuiu e incentivou no Brasil ao longo do último século produz autorizações que, enquanto incentivam o consumo da blockbusterização branco-patriarcal da cultura kitsch do primeiro mundo, apagam e minimizam as manifestações artísticas produzidas aqui, nas brechas.

Segundo, para que se crie um circuito de culturas alternativas que retome o legado decolonial. Para que se instaurem novos diálogos possíveis entre as palavras, as imagens, os sons e as sensações que surgem quando o corpo vive as dores e delícias de ser-se explorado na América do Sul. Com o pretexto mínimo de apresentarem outras vozes que reverberem gritos mais locais contra a hegemonia do sentir. Para que o corpo do explorado, o nosso próprio corpo, seja inserido em outras zonas culturais – no contrabando do anonimato e da temporalidade que se estabelece em cada contato artístico. Para que, ao conhecer mais sobre essa geografia outra – a geografia subalterna, um outro tipo de contágio seja possível.

No primeiro episódio da série de vídeo-colagens Ideias Para Suportar o Mundo do artista multimídia Rafael Zen, o pesquisador e teórico indiano-ingles Homi Bhabha defende que a luta contra a opressão colonial não apenas muda a direção da história ocidental, mas também contesta os instrumentos sociais que produzem, sugerem e circulam cultura.

Olhar para as artes do sul do mundo com a vontade de construir, como diz a escritore e artiste visual brasileira Jota Mombaça em seu Rastros de uma Submetodologia Indisciplinada (2016), “um método selvagem de construção bibliográfica, que colecione rastros e teça redes de contrabando. Para que a teoria não se reduza aos circuitos acadêmicos com suas bibliotecas empoeiradas geridas por sistemas organizacionais mecanicistas”.

Através dos escritos de Mombaça – uma bicha não binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil, escrever é fazer correr, em circuito expandido, um saber que já transborda as estruturações sistemáticas que procuram tangenciá-lo, é fazer carcomer o centro do poder pelas bordas, afirmar uma bibliografia selvagem que ousa existir no ponto cego dos arquivos oficiais.

Portanto, debruçar-se sobre a América Latina não deve ser apenas um capricho curatorial para que se publiquem mais e mais artigos em revistas científicas. Pelo contrário. Observar e absorver os discursos latino-americanos deve ser a estratégia essencial de um processo que restaura um intenso fluxo de referências pouco conhecidas (ou menos conhecidas do que deveriam ser) – as referências daqui do Sul do mundo.

Em sua primeira temporada, a série Ideias para Suportar o Mundo debate o livro “Holocausto Brasileiro: Genocídio e 60 mil mortos no maior hospício do Brasil” da jornalista brasileira Daniela Arbex.

No artivismo global, é necessário debruçar-se sobre os conhecimentos subalternos com redobrado cuidado, tornando o diálogo entre artistas, escritores, teóricos e filósofos cada vez mais acessível.

Para traçar-se um exercício de amplificação do ruído das diferenças que compõem as artes e literaturas latino-americanas, a análise das vozes além do centro se apresenta tanto como estratégias de pesquisa e escrita, quanto de leitura e (de)formação contra a colonialidade do sentir.

Ideias Para Suportar O Mundo: a identidade subalterna como prática de colagem

A cultura fornece a matéria-prima com a qual o indivíduo faz a sua vida. Se ela é escassa, o indivíduo fica em desvantagem; se ela é rica, o indivíduo tem a possibilidade de se mostrar à altura de sua oportunidade. Ruth Benedict, Padrões de cultura (2013)

Desde 2018, tenho organizado diversos projetos artístico-políticos através do coletivo independente catarinense Lote84. Como artista residente, pude experimentar como teórico e artista através de múltiplos exercícios que apresentam-se no limiar da arte-educação, engajamento comunitário, teoria filosófica-política, e temas da decolonialidade.

Um desses projetos se chama Ideias Para Suportar o Mundo, um curso de arte-filosofia-sociologia onde apresento e debato textos sobre pós-estruturalismo, anticapitalismo, anticolonialidade e pensamento anárquico.

O projeto, além de ser um espaço de diálogos e questionamentos, também desenvolveu em 2021-2022 uma série de episódios entre a video-colagem e a colagem de teorias onde as gravações das aulas são transformadas em experimentos poéticos sobre videoarte, arte sonora e colagem.

Ao construir uma plataforma onde ideias podem delirar tanto quanto as artes, Ideias para Suportar o Mundo aceita a descontinuidade das comunicações e informação na sociedade de massa, criando uma teia de discursos que sugerem mais do que admitem, questionam mais do que afirmam, e provocam o pensamento para que ele nao morra quieto.

Através de 18 episódios, a websérie Ideias para Suportar o Mundo apresenta vídeo-colagens e colagens de teoria a partir das gravações do curso de mesmo nome organizado pela Lote84 em 2021. Com apresentação e edição de Rafael Zen, o programa debate temas acerca da colonialidade do sentir, da construção de micro-comunidades e do pensamento crítico contra a servitude.

Em 2022, a websérie apresentará 18 episódios, a partir de um trabalho coletivo entre Brasil e Canadá, com edição de vídeo de Rafael Zen, design de som por Khalil Alomar, e produção do coletivo Lote84.

Alguns dos autores utilizados como referência para a websérie são: Marilena Chaui, Gayle Rubin, Ruth Benedict, Homi Bhabha, Jota Mombaça, Alessandra Munduruku, Frantz Fanon, Rosaura Sánchez, Maria Bento, Gayatri Spivak, Ailton Krenak, Judith Butler, Margaret Mead, Susan Sontag, Talia Mae Bettcher, Bell Hooks, Paulo Freire, Shoshana Zuboff, Marcia Tiburi, Maria Lacerda de Moura, Seyla Benhabib, Michel Foucault, Achille Mbembe, Molefi Kete Asante, Slavoj Zizek, entre outros.

Assista os primeiros episódios clicando nos links abaixo:

Episódio 01 – Parte 01

https://www.youtube.com/watch?v=lmaGs_xMr6Q&t=38s

Episódio 01 – Parte 02

https://www.youtube.com/watch?v=tAEFJqMqeNk&t=3s

Toda quarta-feira, um novo episódio será lançado através do canal de Youtube da Lote84.

Até o próximo texto!

Rafael Zen