O exército dos vagamente conscientes
Há na literatura da filósofa Hannah Arendt um desconforto sempre iminente. Ela, que durante sua trajetória crítica debruçou-se sobre a vida política, a vida social, o espírito e a banalidade do mal, trouxe em seu livro “Eichmann em Jerusalém” (1963) discussões acerca da crise contemporânea do pensamento e uma visão sobre corpos que são/estão vagamente conscientes. Mas o que significa dizer que podemos exercer a consciência vaga?
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Para responder a essa questão, abordo alguns debates que levantei no evento Caos Filosófico, organizado pelo professor Paulo Ferrareze no espaço Lote84 em Balneário Camboriú. Ao ser convidado a debater a questão filosófica dos extremismos ideológicos – principalmente sobre a questão das ditas “comunidades de ódio”, levei à discussão o conceito de banalidade do mal em Arendt.
Para a autora, há um conjunto de determinismos históricos, distorções de fatos e teorias, alienações ideológicas e privilégios difíceis de serem abdicados que influenciam o cenário político-social que funda os séculos XX e XXI. Na ocasião, lembro-me que uma das provocações que mais causou furor nos participantes foi o questionamento sobre a naturalização do bem versus a predisposição ao mal.
Nesse ponto, concordo com Foucault e Nietzsche (e tantos outros pensadores da corrente discursiva-cultural) quando dialogam: não há nada predisposto antes do nascimento do homem. Isso significa dizer que tanto o bem quanto o mal são linguagens exercidas puramente dentro da convivência social. O slogan ainda se sustenta: ninguém nasce sujeito, torna-se. Portanto, ninguém nasce bom ou mal – torna-se.
O processo da constituição da maldade é criado, exercitado, instigado e coagido dentro das próprias estruturas da cultura e, portanto, nenhum de nós está livre desse pressuposto. Em determinado momento do livro, Hannah Arendt ainda provoca além: o mal não poderia ser explicado como uma fatalidade, mas sim caracterizado como uma possibilidade dentro do repertório humano de ação.
A frase acima pode chocar, à primeira vista, os mais ingênuos. Apesar de defender e tentar vivenciar uma política democrática da pacificação dos gestos, do apaziguamento das violências e do respeito às diferenças, compreendo, no entanto, não serem esses “desejos meus” também “desejos obrigatórios”.
Apesar de termos caminhado – no pós-guerra do século XX, como coletividade global – grandes passos adiante na busca por condições mais pacíficas e igualitárias de vida, compreendo que fazemos isso por interpelações de discursos que estão dentro de regimes específicos de saberes. Isso significa dizer que nossos atos, nossa própria compreensão do mundo e da diversidade, nossa própria autocompreensão como identidades e sujeitos, dependem de narrativas, ficções, discursos e representações estereotipadas que tomamos como verdade, mentira ou aberração.
Sobre essa possibilidade do bem, que linguisticamente já pressupõe a possibilidade do mal, é possível encontrar ainda em Arendt uma ausência de surpresa em relação aos atos extremos de grupos ideologicamente autoritários, fascistas e bélicos. Ela diz: os tempos sombrios não são novos, nem constituem uma raridade na história.
O mal seria, portanto, um produto cultural estimulado para fins de manutenção de poderes. Ele estabelece hierarquias de convivência que determinam modos superiores de vida, instigam a autoimagem daqueles que odeiam e o perpetuam, constituindo-se linguisticamente tanto como diferenciação quanto preservação do “si mesmo” em relação à diversidade e ao caos do mundo.
Ser alguém mal, nesse sentido, é ser alguém que estabelece um caos particular como sistema de ordenar a realidade. Depende, portanto, de duas características inerentes às sociedades de massa: a superficialidade e a superfluidade. Para Arendt, o mal se torna banal quando seus agentes são superficiais e suas vítimas consideradas supérfluas e, quanto mais superficial o sujeito for, mais provável será que ele ceda aos discursos de ódio, que adentre regimes dessa “repulsa direcionada ao outro”.
Quanto à superfluidade da vida humana, a autora afirma que este tem sido um fenômeno decorrente do sentido utilitário das sociedades pós-Revolução Industrial e que se constitui dentro da massa de consumidores. Ela afirma que pessoas se tornam supérfluas quando aprendem a pensar o mundo apenas em termos utilitários. Tornando-se a si mesmo um sujeito utilitário, esse indivíduo contemporâneo transita entre acontecimentos políticos, sociais e econômicos que conspiram silenciosamente a partir de instrumentos discursivos para tornar nossos corpos dóceis diante de ideologias, ideias e fatos.
Logo, se a condição de perpetuar e instigar o mal (e aqui posso citar o ódio, o preconceito, a precarização de certas vidas, os regimes discursivos que instauram correntes de baixa autoestima, a violência doméstica, o bullying) depende de um regime ideológico instaurado mediante saberes, o faz mais facilmente dentro de mentes acostumadas com a irreflexão.
A questão que a filosofa se propõe a aprofundar, então, é a ausência do pensamento e sua possível relação com os atos maus. Eles emergem mais facilmente quando encontra condições precárias de pensamento ou até mesmo a ausência total do livre pensar. É a incapacidade de pensar que cria ambientes privilegiados para o fracasso moral e a manutenção do mal – independentemente de escolaridade, raça, gênero ou contexto social. O ato de pensar pode condicionar os seres humanos a não praticar o mal, pois entendem a convivência humana de maneira complexa e sem tabus essencialmente desumanos.
Sabendo-nos parte de uma coletividade forçada, resta ainda uma última provocação: qual o potencial da educação – seja no âmbito formal da escolarização ou nos espaços não tradicionais da troca de saberes – para estimular novos sujeitos a conduzirem as futuras gerações de maneira mais harmoniosa e democrática? Se há potência, ela deve estar inserida em formas transformadoras de se educar para a sensibilidade ao outro.
O exército dos vagamente conscientes está posto no centro da convivência social. É fruto de condições marginalizadas de saberes, da incompetência de nossa própria cultura de estabelecer mecanismos eficientes de formação crítica. O mal é nosso fruto e responsabilidade. Como Arendt afirma, o pensamento é uma saída – e não armadilha – do mundo.
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Há, na consciência de si e do todo, a capacidade de romper com o fluxo automático de ideias implantadas por forças que exigem mais e mais poder. O pensar pode apresentar uma descontinuidade da vida que está posta, uma parada para reflexão: refletir sobre os afetos e a potência avassaladora da educação voltada à diversidade.
Vivendo dentro de uma sociedade plural que, por séculos, acreditou no mal como única opção para a conquista de espaços de fala e existência, agora é preciso que nossa geração rompa com essa tradição. Afinal, nos costumes mais normalizados também reside um tentador convite ao mal. O que nos resta é a dúbia opção entre viver a vida conformativa ou uma vida voltada à complexa compreensão.