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O detalhe que efervesce o todo: as poéticas políticas de Horacio Zabala e Doris Salcedo

por Rafael Zen Esboços e rascunhos de um projeto arquitetônico de encarceramento e uma rachadura no chão do museu. Cada um ao seu modo, esses dois exemplos de obras de arte conceitual parecem indicar um atravessamento poético e linguístico no panorama dos processos artísticos contemporâneos latino-americanos. Além disso, conectam-se porque necessitam da palavra como ancoradouro […]

por Rafael Zen

Esboços e rascunhos de um projeto arquitetônico de encarceramento e uma rachadura no chão do museu. Cada um ao seu modo, esses dois exemplos de obras de arte conceitual parecem indicar um atravessamento poético e linguístico no panorama dos processos artísticos contemporâneos latino-americanos.

Além disso, conectam-se porque necessitam da palavra como ancoradouro para a significação: o texto verbal, aqui, contribui para iluminar o significado do texto visual, amplia-o. Seleciona filtros ao modo de olhar, subverte a leitura inicial. Ao inverter a hierarquia da informação, a escrita – desse tipo efervescente – questiona a imagem que antes funcionava como um índice na direção de sentido.

O que se investiga aqui é o título da obra conceitual como detalhe intrínseco – não mais secundário – na experiência que se abre a partir do contato com a exposição da obra. Esse texto que, como sugestão de algo que antes passava despercebido, expõe o pacto linguístico que funda a percepção da arte.

O que se encontra do outro lado da cortina é a sugestão de que, entre a imagem e sua inscrição, um terceiro fenômeno se faz possível.

Neste artigo, o que se pretende investigar são obras no panorama da arte conceitual que necessitam da leitura (e presença) do título para situar o olho-espectador em seu jogo de interesses ora estéticos, ora políticos.

Obras que flertam com a linguagem escrita em sua maneira de propor reflexões e, portanto, que entendem esse tipo de escritura além de sua função de elemento complementar. Nesses experimentos, ele ganha importância extra-catalográfica, pois se passa despercebido, perde-se um dos fios condutores para que a semiose ocorra.

A partir do contato entre a obra artística conceitual e o sujeito-espectador que se propõe à leitura, os caminhos que esses nomes sugerem abrem a possibilidade de um novo tipo de estratégia de significação – a efervescência do todo pela atenção ao detalhe.

Por meio dele, o acontecimento linguístico inicia num processo de divisão de linguagens através de seu campo de enunciação, fundindo uma instância onde comunicação/significação se misturam, se desfazem, e se transformam em uma disputa incessante pela produção de significados dentro daquele universo artístico-delirante.

Ao introduzir o nome da obra no jogo semiótico que potencializa o contato entre artista e público, os trabalhos pesquisados abrem espaços para investigações sobre a linguagem não como sistema arbitrário que espera ser/ter sentido – mas como palavras propostas ao homem como uma coisa a se decifrar.

Um detalhe – que também é convite.

Arte sob e sobre a escrita: teorias e experimentações acerca do título da obra de arte na América do Sul

Na armadilha possível dentro do manual conceitual – que captura a atenção e carrega o sentido para um outro lugar – o olhar atento que se põe a ler a obra deve aceitar dissipar-se a partir da palavra reconhecida e do artifício compreendido.

O truque apaga do lugar-comum a divisão entre os signos da escrita catalográfica e as linhas da imagem considerada “a obra”. Aqui, não há divisão entre o texto escrito que impulsiona o texto visual para fora da moldura: tudo se amalgama indiviso.

Esse fervilhar de sentido pode ser observado na obra “Anteprojeto para uma arquitetura carcerária latino-americana com capacidade de crescimento ilimitado” (1973) do artista argentino Horacio Zabala (Figura 04).

Proposta para a revista uruguaia de investigação poética e difusão de poesia visual OVUM (Argentina, 1969-1975), editada pelo poeta e performer uruguaio Clemente Padín, a obra baseia-se em experimentos gráficos que atuam como um comentário político acerca dos encarceramentos em massa durante ditaduras latino-americanas.

“Anteprojeto para uma arquitetura carcerária latino-americana com
capacidade de crescimento ilimitado” de Horacio Zabala (Argentina, 1973)

O que percebe-se, no entanto, é a potência que seu título ganha a partir do contato com os desenhos – aparentemente tão simples e mecânicos quanto projetos arquitetônicos reais.

A princípio, nota-se as formas: entre a planta, o corte e a perspectiva, o caixão, o cubículo, e o mínimo delimitado, são as sugestões dadas a partir da palavra que ativam a significação e fazem com que aquele mero esboço de construção civil passe a denunciar a crueldade do sistema prisional e militar que se forçava sobre os corpos dos civis na América Latina dos anos 1960 e 1970.

Apresentando um texto que estremece a ilusão da imagem, a série – que também conta com outros projetos arquitetônicos como o “Projeto para uma prisão flutuante e subterrânea para artistas” de 1973, crítica direta ao desaparecimento dos corpos de artistas uruguaios lançados ao Río de la Plata – permite-se pensar o papel do nome na paródia quando, como nas listas de Stolf, absorve-se um método de conhecimento (neste caso, arquitetônico) para submetê-lo ao delírio das artes.

Ao admitir ser um “anteprojeto” de capacidades “ilimitadas”, o nome proposto pelo artista uruguaio zomba da aparente seriedade/simplicidade do que se vê, exercendo um contágio estético-político sobre o papel impresso.

Ao suspender por um instante o que se vê de imediato e propor uma reflexão crítica que contrapõe o desenho, o título delineia as estruturas repressivas constituintes daquele modelo político, onde o público participante deve adentrar uma dupla operação de deslocamento entre as convenções do real (a cópia da planta impossível – que questiona o sentido da violência exercida sobre os corpos) e as convenções catalográficas (o título do documento que o transforma em potência poética).

Nesse terceiro espaço criado mentalmente – que não é visualidade imediata nem texto – a palavra direciona geográfica, histórica e culturalmente o sentido, preenchendo as lacunas do que antes poderia passar despercebido.

Essa mesma tática de significação pode ser observada em “Shibboleth” (2007) da artista colombiana Doris Salcedo (Figura 05) quando seu título, ao ser introduzido sobre a instalação, injeta tanto carga simbólica quanto histórica no que se vivencia no espaço expositivo: novamente há uma experiência física que, quando sobreposta à inscrição, transforma a obra em metáfora e carrega o debate para o campo político.

Criada para o museu Tate Modern de Londres a distância – do estúdio de Salcedo em Bogotá, a instalação consistiu na criação de uma fissura profunda no piso do Turbine Hall no Tate – de mais de 160 metros de comprimento, que se estendia de uma extremidade à outra da galeria. De acordo com o texto oficial da exposição, encontrado no site oficial do museu:

O termo shibboleth refere-se a uma palavra, frase ou costume que pode ser usado para testar se um indivíduo pertence ou não a um determinado grupo ou região. Foi usado pela primeira vez dessa maneira em uma história do Antigo Testamento em que os efraimitas, derrotados em batalha pelos gileaditas, foram desafiados pelos gileaditas a dizer a palavra shibboleth para poder fugir pelo rio Jordão. Os efraimitas foram incapazes de pronunciar o som ‘sh’ e, como consequência, todos os 42.000 foram massacrados pelos gileaditas. Com isso em mente, a rachadura no piso pode ser vista como um símbolo dos danos causados ​​pela exclusão cultural e geográfica. (TATE, 2007, s/p)

No mesmo texto, Salcedo afirma que a rachadura no espaço expositivo revela uma história colonial desconsiderada dos registros oficiais e marginalizada: a história da xenofobia, paralela à história da modernidade.

Além disso, a artista descreve o projeto como uma tentativa de abordar a parte da humanidade que foi deixada de fora da história da modernidade – mantida à margem da alta cultura ocidental, uma cultura marcada pela cisão, pela separação e pela catalogação dos indivíduos dentro de sistemas desiguais e opressores.

“Shibboleth” de Doris Salcedo (Colombia/Reino Unido, 2007)

Detalhe, convite ou pista, o nome aqui deflagra o perigo de atravessar fronteiras ao sugerir uma história bíblica sobre xenofobia e guerra.

Na proposta, como percebe-se, Salcedo tensiona mais do que os limites entre escultura, instalação e espaço expositivo quando – ao cobrir a fissura também com uma palavra que delineia e sugere seu sentido, um massacre que dizimou mais de 40.000 pessoas – convida a reflexão: o que significa morrer ao atravessar uma fronteira?

Em seu artigo “Sobre rachaduras, arte política e relações de poder” de 2019, a pesquisadora Catarina Spagnol afirma que Salcedo convida os visitantes da obra para pensar sobre a luta intrínseca à situação da xenofobia.

Ao fazê-lo, a autora chama a atenção para a leitura física que o espectador faz da instalação: o olhar para baixo (na rachadura) encontra a experiência do imigrante na estrutura preestabelecida pela divisão social hierárquica inter identidades.

Essa estratégia de significação, que convida o espectador a um percurso discursivo por entre uma narrativa – neste caso bíblica, faz emergir do texto sentidos extra-visualidade – carrega-a do museu para os campos de batalha, suspendendo/elevando sua fisicalidade à mente por sua provocação conceitual.

Como percebe-se, a palavra, nesses dois casos, delineia o ponto de ebulição da ideia e oferece novas possibilidades de leitura àquelas visualidades propostas para diferentes espaços expositivos – a galeria, o museu, a publicação.

De mero detalhe catalográfico, esses títulos expõem e expandem o pacto simbólico entre quem cria e quem vê, possibilitando novos caminhos de pesquisa para o campo dos processos artísticos contemporâneos.

TATE, Museu. Doris Salcedo – Shibboleth. s/p, 2007. Disponível em: https://www.tate.org.uk /art/artworks/salcedo-shibboleth-i-p20334. Acesso em: 20 jan. 2022.