O colapso dos afetos
Detesto quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia
– Nietzsche
Em certo momento de seu livro “O circuito dos Afetos” (Editora Autêntica, 2015), o filósofo Vladimir Safatle questiona: se quisermos mudar as estruturas de poder, o que faremos para sermos afetados de outras formas, para sermos individualizados de outras maneiras, para forçamos a produção de novos afetos?
A questão se torna clara ao longo do livro: para ele, compreender o poder é uma questão de compreender os modos de construção da política – quais afetos produzem e quais proíbem a fim de individualizar os corpos. A política aparece ao longo do livro como uma co-criação entre o meio social e o indivíduo, afinal, o processo de construção desse “sujeito-eu” é sempre o da assimilação de verdades que nos tornam reféns daquilo no qual acreditamos. Aqui, ser é [re]conhecer-se.
Bem, os afetos circulam entre nós. Concordando que uma sociedade é normalmente pensada como um sistema de comportamentos direcionados para três instâncias principais – a linguagem, o desejo e o trabalho – é fácil compreender que a linguagem se instala na cultura como um sistema por adesão.
Por isso o estudo dos discursos, porque é através dos afetos que nos transformamos e nos abrimos para nossas singulares formas de vida. Nesse sentido, o devir (esse futuro sempre prestes a acontecer) é mediado e modulado pelos sentimentos e sofrimentos que a cultura nos impõe.
São os sujeitos como seres afetados pelas coisas e pelas narrativas que formam a sociedade, porque o que fazemos como corpos é nos conduzirmos como instrumentos políticos para gerarmos determinado efeito (ou efeito qualquer). Eis a prova de que somos seres movidos pelos discursos, porque é pela linguagem que fazemos sobreviver ou deteriorar nossa herança linguística. Resistência, no campo da linguagem, pode determinar os fatores da existência.
Em uma palestra intitulada “Por um colapso do indivíduo e de seus afetos”, para o Café Filosófico da CPFL Cultura, Safatle provoca: talvez estejamos muito presos a uma concepção de individualidade que, ao invés de ser a expressão de nossa liberdade, seja a concepção mais refinada de nossa servidão. Somos irremediavelmente corrompidos por nossos afetos e eles exigem nossa comprovação pública o tempo todo. Aqui, ser é mostrar-se.
Ao olhar para si mesmo como um produto extremamente inédito e individualizado – um museu de velhas novidades – o sujeito perde a noção do quanto é composto por aquilo que vem de fora. A partir do momento em que é colocado em circulação com outros corpos, de maneira involuntária (porque esse contato com o outro nunca é resultado puro da vontade), o sujeito cria também um medo imenso daquilo que é heterônomo – daquilo que desconhece, que o desampara da verdade, que o descentraliza, daquilo que o faz um ser descontínuo.
Para criar sujeitos, é necessário esse desamparo, daquilo que o torna seguro, daquilo que ele só reconhece em si mesmo, é preciso certo descomprometimento com verdades imutáveis. Para reconhecer a coletividade, não se pode pensar abaixo de regimes tão rígidos de certezas porque a certeza torna-se ruído. Para uma sociedade menos neurótica, é preciso que se meça a potência dos afetos soberanos – para que se tornem mais maleáveis as crenças absolutas.
A capacidade de ser reconhecido naquilo que vem de fora, naquilo que é involuntário, na visão de Safatle, é o sinônimo mais puro da verdadeira liberdade. Esta potência, de se abrir para aquilo que não é imediatamente a imagem de si mesmo, é a única forma de não cair-se na miséria da imaginação política e social.
A liberdade possível, para as sociedades contemporâneas, só pode vir de um encontro com a alteridade no sentido de adentrarmos o campo social munidos de um interesse genuíno pelo que é diferença no outro – por aquilo que contrasta em mim, pelo que meu corpo nega como espelho. Aqui, ser é contrastar-se e dissolver-se a partir do outro.
Temos dificuldade de nos relacionarmos criativamente com esse sujeito-outro porque estamos completamente presos à nossa imagem única como ferramenta de associação, distraídos pela sensação de escolher lados, nos reconhecer no espelho o tempo todo. Ser livre é justamente o oposto, ser colocado corriqueiramente em um lugar de estranhamento, porque o minuto seguinte é sempre inédito e a diferença sempre complexa.
Quando pensamos na política das identidades, que ainda nos é necessária, resta-nos saber como pensar a identidade além de uma posse que temos de nós mesmos. Neste momento, parece que mostrar quem somos é também sinônimo de mostrar nossas propriedades, o que do mundo vestimos no corpo, o que tatuamos na carapaça.
Tratamos, assim, as nossas verdades como atributos, são elas que nos individualizam, é assim que afirmamos com tanta honra nossas singularidades. Toda relação por aproximação identitária é uma relação contratual, faz parte de um pacto, prevê algemas.
Para um campo social mais acessível, é necessário que o Outro não seja compreendido como aquele que deve confirmar minha identidade, mas também como aquele que me despossui dela. Despossuir é a causa natural de certas indisposições aos encontros: só nega a diversidade quem está aterrorizado de ser tirado de si e colocado em um terreno incerto. No entanto, o verdadeiro encontro nunca é uma confirmação do reflexo. Sempre obriga o sujeito a modificar sua própria narrativa, torna incerta toda a certeza e possui a capacidade de redefinir os atributos ele contava de si.
Para afirmar a liberdade, é necessário que não busquemos nossa confirmação no outro, mas nossa reinvenção.