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O colapso dos afetos

Detesto quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeira companhia
– Nietzsche

Em certo momento de seu livro “O circuito dos Afetos” (Editora Autêntica, 2015), o filósofo Vladimir Safatle questiona: se quisermos mudar as estruturas de poder, o que faremos para sermos afetados de outras formas, para sermos individualizados de outras maneiras, para forçamos a produção de novos afetos?

A questão se torna clara ao longo do livro: para ele, compreender o poder é uma questão de compreender os modos de construção da política – quais afetos produzem e quais proíbem a fim de individualizar os corpos. A política aparece ao longo do livro como uma co-criação entre o meio social e o indivíduo, afinal, o processo de construção desse “sujeito-eu” é sempre o da assimilação de verdades que nos tornam reféns daquilo no qual acreditamos. Aqui, ser é [re]conhecer-se.

Bem, os afetos circulam entre nós. Concordando que uma sociedade é normalmente pensada como um sistema de comportamentos direcionados para três instâncias principais – a linguagem, o desejo e o trabalho – é fácil compreender que a linguagem se instala na cultura como um sistema por adesão.

Por isso o estudo dos discursos, porque é através dos afetos que nos transformamos e nos abrimos para nossas singulares formas de vida. Nesse sentido, o devir (esse futuro sempre prestes a acontecer) é mediado e modulado pelos sentimentos e sofrimentos que a cultura nos impõe.

São os sujeitos como seres afetados pelas coisas e pelas narrativas que formam a sociedade, porque o que fazemos como corpos é nos conduzirmos como instrumentos políticos para gerarmos determinado efeito (ou efeito qualquer). Eis a prova de que somos seres movidos pelos discursos, porque é pela linguagem que fazemos sobreviver ou deteriorar nossa herança linguística. Resistência, no campo da linguagem, pode determinar os fatores da existência.

No filme “O Processo” (Orson Welles, 1962), inspirado no livro homônimo de Kafka, a partir de uma sequência infindável de surpresas quase surreais, geradas por uma lei maior e inacessível, todos os livros devem continuar fechados

Em uma palestra intitulada “Por um colapso do indivíduo e de seus afetos”, para o Café Filosófico da CPFL Cultura, Safatle provoca: talvez estejamos muito presos a uma concepção de individualidade que, ao invés de ser a expressão de nossa liberdade, seja a concepção mais refinada de nossa servidão. Somos irremediavelmente corrompidos por nossos afetos e eles exigem nossa comprovação pública o tempo todo. Aqui, ser é mostrar-se.

Ao olhar para si mesmo como um produto extremamente inédito e individualizado – um museu de velhas novidades – o sujeito perde a noção do quanto é composto por aquilo que vem de fora. A partir do momento em que é colocado em circulação com outros corpos, de maneira involuntária (porque esse contato com o outro nunca é resultado puro da vontade), o sujeito cria também um medo imenso daquilo que é heterônomo – daquilo que desconhece, que o desampara da verdade, que o descentraliza, daquilo que o faz um ser descontínuo.

Para criar sujeitos, é necessário esse desamparo, daquilo que o torna seguro, daquilo que ele só reconhece em si mesmo, é preciso certo descomprometimento com verdades imutáveis. Para reconhecer a coletividade, não se pode pensar abaixo de regimes tão rígidos de certezas porque a certeza torna-se ruído. Para uma sociedade menos neurótica, é preciso que se meça a potência dos afetos soberanos – para que se tornem mais maleáveis as crenças absolutas.

A capacidade de ser reconhecido naquilo que vem de fora, naquilo que é involuntário, na visão de Safatle, é o sinônimo mais puro da verdadeira liberdade. Esta potência, de se abrir para aquilo que não é imediatamente a imagem de si mesmo, é a única forma de não cair-se na miséria da imaginação política e social.

A liberdade possível, para as sociedades contemporâneas, só pode vir de um encontro com a alteridade no sentido de adentrarmos o campo social munidos de um interesse genuíno pelo que é diferença no outro – por aquilo que contrasta em mim, pelo que meu corpo nega como espelho. Aqui, ser é contrastar-se e dissolver-se a partir do outro.

Na obra “Operários” (Tarsila do Amaral, 1933), capitalismo e migração se confundem pela imensa variedade de pessoas advindas de todas as regiões do Brasil – para trabalhar nas fábricas

Temos dificuldade de nos relacionarmos criativamente com esse sujeito-outro porque estamos completamente presos à nossa imagem única como ferramenta de associação, distraídos pela sensação de escolher lados, nos reconhecer no espelho o tempo todo. Ser livre é justamente o oposto, ser colocado corriqueiramente em um lugar de estranhamento, porque o minuto seguinte é sempre inédito e a diferença sempre complexa.

Quando pensamos na política das identidades, que ainda nos é necessária, resta-nos saber como pensar a identidade além de uma posse que temos de nós mesmos. Neste momento, parece que mostrar quem somos é também sinônimo de mostrar nossas propriedades, o que do mundo vestimos no corpo, o que tatuamos na carapaça.

Tratamos, assim, as nossas verdades como atributos, são elas que nos individualizam, é assim que afirmamos com tanta honra nossas singularidades. Toda relação por aproximação identitária é uma relação contratual, faz parte de um pacto, prevê algemas.

Para um campo social mais acessível, é necessário que o Outro não seja compreendido como aquele que deve confirmar minha identidade, mas também como aquele que me despossui dela. Despossuir é a causa natural de certas indisposições aos encontros: só nega a diversidade quem está aterrorizado de ser tirado de si e colocado em um terreno incerto. No entanto, o verdadeiro encontro nunca é uma confirmação do reflexo. Sempre obriga o sujeito a modificar sua própria narrativa, torna incerta toda a certeza e possui a capacidade de redefinir os atributos ele contava de si.

Para afirmar a liberdade, é necessário que não busquemos nossa confirmação no outro, mas nossa reinvenção.