A necessidade do ser humano de pertencimento é vista desde a tenra infância através da sua ânsia de participação em diferentes comunidades. A partir da convivência com a alteridade, percebe-se a diferença, pois somos seres únicos e distintos uns dos outros.

As diferenças são observadas primeiramente no núcleo familiar e na escola, e a partir daí as ofertas de “identidades” surgem de uma forma bem significativa. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma que poucos de nós (e eu já me arriscaria em dizer nenhum de nós) são capazes de evitar a passagem por mais de uma “comunidade de ideias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bem-integradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem problemas em resolver a consistência e continuidade da nossa identidade com o passar do tempo.

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Num passado não muito distante, as “identidades” eram tema que se limitava a meditações filosóficas, como afirma Bauman. E desde que um grande número de pessoas começou a apresentar crises identitárias e a questionar-se quem são, no que realmente acreditam, sentem e pensam, o tema expandiu-se para o cerne da contemporaneidade e foi adotado pela ciência, mais precisamente por estudos socioculturais com suas respectivas teorias que ainda são relativamente novas e escassas de literatura.

Em consequência a toda esse leque de “identidades” que nos é ofertado, vários movimentos de lutas identitárias da modernidade líquida – termo usado por Bauman – trouxeram à tona o assunto, sem conseguir evitar as crises refletidas pelos conflitos de diferentes espécies. Percebo que o conflito interno é o primeiro a ser experimentado por essas classes em busca de expressarem suas vozes a fim de serem ouvidas.

Há pessoas que são privilegiadas e conseguem escolher livremente suas “identidades” ao longo de suas vidas, sem que haja alguma barreira, luta, ou contestação de quaisquer comunidades que fazem parte. Há outras pessoas que ainda conseguem escolher suas “identidades”, porém passam por maiores dificuldades, pois não são facilmente aceitas nos padrões estabelecidos pelo grande grupo, exemplos disso são as classes minoritárias de número ou “valor”.

E há um terceiro grupo de pessoas, aquelas que simplesmente têm suas “identidades” negadas e suas vozes tornam-se abafadas, exemplos disso podem ser moradores de rua, refugiados e outros grupos minoritários, que mesmo que seus comportamentos sejam genuínos, são controlados pelo Estado, como acontece no país sede da copa do mundo 2018. Nação com um governo repressor e pensamentos fundamentalistas, a Rússia cerceia comportamentos genuínos em público da comunidade LGBT, por exemplo.

Em seus autorretratos, a fotógrafa Cindy Sherman desafia o conceito de identidade

Para os privilegiados que conseguem (e desejam) escolher suas identidades genuínas, Bauman nos faz refletir sobre nossas diferenças quando questiona: como viver juntos com um mínimo de rivalidade e conflito, enquanto mantém inabalada a liberdade de escolha e autoafirmação?

Em resumo: como alcançar a unidade (apesar da?) diferença e como preservar a diferença na (apesar da?) unidade. Percebo que não há receitas prontas para tal desafio, entretanto quando o pensamento crítico e lúcido prevalece, o grande número de ferramentas ao nosso dispor faz com que consigamos conviver com a diversidade de forma mais espontânea.

Ainda sobre esses grupos, a escritora polonesa Wislawa Szymborska conhecida como o Mozart da poesia, que ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1996, afirma em seu poema “Entre Muitos” do livro “Chwila (2002):

“Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.”

Com relação aos grupos que tiveram suas identidades negadas e que Bauman os chamam de “subclasse”, Eduardo Galeano escreveu um texto sobre uma dessas categorias, os refugiados. A “subclasse” é um grupo heterogêneo de pessoas que – como diria Giorgio Agamben – tiveram o seu “bios” (ou seja, a vida de um sujeito socialmente reconhecido) reduzido a “zoe” (a vida puramente animal, com todas as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas).

A artista e perita criminal Berna Reale é uma das performers brasileiras em maior produção na atualidade. Na performance “Limite Zero” (2012), ela é retirada nua de um carro frigorífico e arrastada pelas ruas de Manaus – questionando a passividade do público em relação à identidade da mulher brasileira

Acima de todas as privações, essa “subclasse” têm negado o direito da presença física dentro de um território sob lei soberana, exceto em “não lugares” especialmente planejados, denominados campos para refugiados ou pessoas em busca de asilo a fim de distingui-los do espaço em que os outros, as pessoas “normais”, perfeitas, vivem e se movimentam:

“Alguém roubou seu lugar no mundo. Foram despojados de seus trabalhos, e de suas terras. Muitos fogem de guerras, porém são muitos mais que fogem dos salários exterminados e dos solos arrasados. Os náufragos da globalização peregrinam inventando caminhos, querendo casa, batendo em portas: as portas que se abrem, magicamente, à passagem do dinheiro, se fecham em seus narizes. Alguns conseguem passar, outros são cadáveres que o mar carrega para praias proibidas ou corpos sem nome que jazem debaixo da terra no outro mundo onde queriam chegar.”

Quando se trata de diáspora, lembrei-me de outro livro do teórico cultural e sociólogo Stuart Hall, intitulado “A identidade cultural na pós-modernidade” que complementa as ideias trazidas pela obra “Identidade” de Zygmunt Bauman, assim como aponta momentos históricos que distinguem as diferentes concepções de identidades. Hall nos mostra diferentes sujeitos de identidade: sujeito do Iluminismo, sujeito sociológico e sujeito pós-moderno. O último sujeito é o que Bauman apresenta como moderno líquido.

Quanto à efemeridade e vulnerabilidade das “identidades” na modernidade líquida, pós-moderna ou ainda tardia, Jean-Paul Sartre afirma que para ser burguês não basta ter nascido na burguesia – é preciso viver a vida inteira como burguês!

Quando se trata de pertencer a uma classe, é necessário provar pelos próprios atos, pela “vida inteira” – não apenas exibindo ostensivamente uma certidão de nascimento -, que de fato se faz parte da classe a que se afirma pertencer.

Deixando de fornecer essa prova convincente, pode-se perder a qualificação de classe, tornar-se um déclassé. E paralelamente a isso, nunca saberemos ao certo se a identidade que agora exibimos é a melhor que podemos obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação. O que hoje parece belo, confortável e nobre pode vir a ser, uma vez atravessada a esquina, feio, desajeitado e desprezível.

O artista brasileiro Eduardo Marinho vive nas ruas. Suas obras pretendem invocar sentimentos contra o “todo sufocante”

Há também as “identidades” demasiadamente fugazes e passageiras, que Bauman as chamam de “comunidade guarda-roupas”, em que são reunidas enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham seus casacos nos cabides. Exemplos desse tipo de comunidade são: uma empolgante partida de futebol; um crime particularmente “fotogênico”, inteligente ou cruel; a primeira sessão de um filme altamente badalado; ou o casamento, o divórcio ou infortúnio de uma celebridade altamente em evidência.

O sociólogo prossegue e afirma que suas vantagens em relação à “coisa genuína” são precisamente a curta duração de seu ciclo de vida e a precariedade do compromisso necessário para ingressar nelas e (embora por breve tempo) aproveitá-las. Mas elas diferem da sonhada comunidade calorosa e solidária da mesma forma que as cópias em massas vendidas nas lojas de departamentos diferem dos produtos originais produzidos pela alta-costura.

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Ele ainda nos lembra que o que todos nós parecemos temer, quer estejamos ou não sofrendo de “depressão dependente”, seja à luz do dia ou assombrados por alucinações noturnas, é o abandono, a exclusão, ser rejeitado, ser banido, ser repudiado, descartado, despido daquilo que se é, não ter permissão de ser o que se deseja ser.

Temos medo de nos deixarem sozinhos, indefesos e infelizes. Tememos que nos neguem companhia, corações amorosos, mãos amigas. Receamos ser atirados ao depósito de sucata. O que mais nos falta é a certeza de que isso não vai acontecer – não conosco. Sentimos falta da garantia de exclusão da ameaça universal e ubíqua da exclusão.

No filme “O Medo Devora a Alma” (1974), do diretor alemão Rainer Werner Fassbinder, são problematizadas questões como o trato ao indivíduo estrangeiro, problematizando o racismo e a xenofobia do povo alemão bem como a convivência humana, a maldade e o utilitarismo social

O “medo cósmico” é, nas palavras de Bakhtin, a trepidação sentida “diante do imensuravelmente grande e imensuravelmente intenso: diante do céu estrelado, do volume substancial das montanhas, do mar, e o medo de convulsões cósmicas e desastres naturais.” No cerne do “medo cósmico” jaz, observemos, a não entidade do ser humano amedrontado, abatido e transiente, defrontado com a enormidade do universo permanente – a simples fraqueza, a incapacidade de resistir, a vulnerabilidade do frágil e delicado corpo humano revelado pela visão do “céu estrelado” ou do “volume substancial das montanhas”.

O desamparo se torna evidente quando a vida mortal, risivelmente breve, é medida em relação à eternidade – e ao minúsculo espaço ocupado pela humanidade em relação à infinitude do universo.


Leia abaixo o poema completo de Wislawa Szymborska:

Entre muitos

Sou quem sou.
Inconcebível acaso
como todos os acasos.
Fossem outros
os meus antepassados
e de outro ninho
eu voaria
ou de sob outro tronco
coberta de escamas eu rastejaria.
No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra.
O traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um cai como uma luva
e é usado sem reclamar
até se gastar.
Eu também não tive escolha
mas não me queixo.
Poderia ter sido alguém
muito menos individual.
Alguém do formigueiro, do cardume, zunindo no enxame,
uma fatia de paisagem fustigada pelo vento.
Alguém muito menos feliz,
criado para uso da pele,
para a mesa da festa,
algo que nada debaixo da lente.
Uma árvore presa à terra
da qual se aproxima o fogo.
Uma palha esmagada
pela marcha de inconcebíveis eventos.
Um sujeito com uma negra sina
que para os outros se ilumina.
E se eu despertasse nas pessoas o medo,
ou só aversão,
ou só pena?
Se eu não tivesse nascido
na tribo adequada
e diante de mim se fechassem os caminhos?
A sorte até agora
me tem sido favorável.
Poderia não me ser dada
a lembrança dos bons momentos.
Poderia me ser tirada
a propensão para comparações.
Poderia ser eu mesma – mas sem o espanto,
e isso significaria
alguém totalmente diferente.

(Wislawa Szymborska, Chwila, 2002)