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A literatura para o conhecimento sensível e o senso crítico

Durante as últimas décadas, houve um aumento no uso de tecnologias digitais e as pessoas puderam explorar diversas facilidades que a internet oferece, como vídeos, bate-papo, blogs, fóruns, entre outras, onde novas formas de comunicação foram adotadas através de diferentes gêneros discursivos. Nesta era de modernidade tardia ou modernidade líquida, termos usados respectivamente pelos teóricos Stuart Hall e Zygmunt Bauman, é inevitável que não percebamos a velocidade com que as informações são disseminadas.

Diante desse exacerbado número de informações fugazes, é possível perceber que alguns gêneros discursivos muitas vezes têm o propósito de alienar, enganar ou controlar, como algumas narrativas midiáticas, políticas, religiosas, econômicas, entre outras e, desta forma, não são todos os tipos de narrativas que libertam a mente do pensamento homogêneo, de preconceitos e “verdades” constituídas ao longo do século.

A socióloga francesa Michèle Petit afirma que há processos narrativos que não têm nenhum poder transformador e que são relatos de si mesmo estereotipados, repetidos à exaustão, que não permitem nenhum movimento diante da lembrança – da mesma forma como existem jogos aos quais nos entregamos maquinalmente e que nos fornece uma simples descarga motora, sem provocar simbolização.

Por conseguinte, Foucault afirma que indivíduos podem não ficar aprisionados ao poder como observados em algumas narrativas discursivas, mas sim modificar seu controle em determinadas condições que os permitem usufruir o contra poder através do pensamento crítico, da reflexão, do questionamento do mundo.

Paralelamente aos tipos de narrativas discutidas acima, questiona-se sobre a produção do conhecimento e mais especificamente o papel (ou lugar) da literatura no século XXI. E nesta linha de pensamento, o escritor italiano Ítalo Calvino nos levanta a seguinte reflexão: minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar.

Para o escritor italiano Italo Calvino, clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer / Foto: Divulgação

Quando se trata da narrativa literária, é importante salientar que ela não é uma simples forma de distração ou entretenimento e diferente de alguns tipos de narrativas que têm por trás uma grande corporação ou um conjunto de interesses, a narrativa literária é produzida por um autor solitário. E esse autor pode produzir uma obra com o intuito de transmitir seu modo de pensar ao leitor, ou então, com o intuito de levar o leitor a pensar, a questionar a si mesmo e ao mundo ao seu redor. A literatura permite essa possibilidade de pensamento independente e autônomo.

Para Compagnon, a literatura nos ensinaria a não nos deixarmos enganar por algumas outras narrativas discursivas. O professor afirma: ensinando-nos a não sermos enganados pela língua, a literatura nos torna mais inteligentes ou diferentemente inteligentes. A literatura não é a única, mas é mais atenta que a imagem e mais eficaz que o documento, e isso é suficiente para garantir seu valor perene.

O filósofo e linguista Todorov afirma que indivíduos de uma sociedade estão imersos num conjunto de discursos que se apresentam a eles como evidências, dogmas aos quais eles deveriam aderir. São ideias preconcebidas que compõem a opinião pública, hábitos de pensamento, estereótipos, preconceitos, clichês, aos quais podemos também chamar de “ideologia dominante”, que não encorajam o pensamento crítico em corpos dóceis.

Desde a época do Iluminismo, pensamos que a vocação do ser humano exige que ele aprenda a pensar por si mesmo, em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas ao seu redor. E a literatura tem um papel particular a cumprir nesse caso: diferentemente de alguns tipos de discursos que se dedicam ao controle de uma sociedade, de forma injusta e desigual, ela não formula um sistema de preceitos; por essa razão, escapa às censuras que se exercem sobre teses formuladas de forma literal.

O escritor não faz a imposição de uma tese, mas incita o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, deixando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais ativo.

A literatura é mais densa e eloquente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente e, portanto, amplia nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. A literatura nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Sendo assim, ela produz o conhecimento sensível. E esse conhecimento é acessível a todos, pois ele nos revela a individualidade de cada coisa e permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.

Todorov ainda aponta que o belo é desinteressado e não pode ser estabelecido objetivamente, portanto, reside na subjetividade dos leitores. Sendo assim, a função da literatura é criar, partindo da existência real, um mundo novo que será mais maravilhoso, mais durável e mais verdadeiro que o mundo visto pelos olhos do vulgo. Conhecer novas personagens é como encontrar novas pessoas, com a diferença de que podemos descobri-las interiormente de imediato. Dessa forma, a literatura pode nos aproximar dos outros seres humanos que nos cercam e nos fazer compreender melhor o mundo.

A nós, adultos, nos cabe transmitir às novas gerações essa herança frágil, essas palavras que nos ajudam a viver melhor.