Há mais de 10 anos atuando como professor, percebo os constantes desafios que colegas de diversos segmentos enfrentam em sala de aula. Indo desde o cumprimento de currículos extensos e engessados até aspectos culturais relacionados às diferenças identitárias, já se sabe que a partir de turmas heterogêneas (que preveem a alteridade, a diferença como espaço de trocas e incentivos), professores muitas vezes ficam compelidos a ignorar diversidades cognitivas, tão bem como acabam desconsiderando a individualidade dos alunos a fim de que exista um sujeito-modelo (normal) que pense como uma maioria e aceite a normatividade imposta por um grupo majoritário.

Há uma passagem da filósofa alemã Hannah Arendt que sumariza as consequências da supressão da individualidade de seres humanos. Ela diz que “morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte”. Quando menciona o cão de Pavlov, se refere a indivíduos treinados e condicionados a comportarem-se mecanicamente, sem reflexão de suas ações e pensamentos, facilmente influenciados ou manipulados por diferentes discursos autoritários em seus relacionamentos ao longo da vida.

A sala de aula não é somente o lugar de aprendizado de conteúdos propostos em um currículo de uma disciplina como inglês, português, história, geografia, matemática, entre outras. É também (também pode ser) um ambiente de interação social e reflexão crítica em que a individualidade de ideias e pensamentos divergentes devem ser incentivados e/ou contestados, sempre com diálogos e respeito, promovendo e questionando a “autenticidade” das razões para as diferentes formas de pensar. Isso é educar para a coletividade, no sentido de uma educação cuja ideologia seja a de construir um espaço social mais democrático, que estabilize o poder entre o todo.

A clássica personagem Mafalda em tirinha do Quino / Foto: Divulgação

Em 2016, passei por uma experiência enriquecedora quando tive a oportunidade de cursar uma disciplina chamada “Interculturalidade e Ensino e Aprendizagem de Línguas Adicionais”, em que a turma desenvolveu e publicou um livro, intitulado “Doing Interculturality in the English Classroom”. Enquanto desenvolvemos o projeto, refletimos sobre os significados de cultura, língua, identidade e suas relações com o ensino e aprendizagem naquele contexto específico de línguas adicionais. Trabalhamos com diferentes autores que contribuíram para as teorias linguísticas e da cultura.

Dentre os teóricos estudados, Byram, Gribkova e Starkey, a partir do livro “Developing the Intercultural Dimension in Language Teaching”, nos mostram que interculturalidade é a capacidade de compreensão e aceitação entre pessoas de diferentes identidades sociais, e também a capacidade de interagir com indivíduos como seres humanos complexos e únicos.

Eles explicam que – como pertencemos a grupos distintos ao longo de nossas vidas, experimentando culturas diferentes que possuem determinados comportamentos e valores – nos condicionamos a pensar sob determinados códigos de conduta, podendo fazer com que alguns grupos sejam facilmente estereotipados. Ou seja, você pode estar estereotipando algum grupo social neste exato momento e nem saber disso.

Isso acontece porque existe o fato histórico, um momento presente onde alguns temas e corpos são generalizados, tendo suas existências e diferenças individuais desprezadas por grupos dominantes. Ainda numa perspectiva intercultural, a relação entre o eu e o outro é reformulada por um processo sutil que requer a sensibilidade de professores e alunos atentos às constantes mudanças no ambiente coletivo.

Cena da animação francesa Persépolis, de 2007 / Foto: Divulgação

É importante salientar que a interculturalidade não se refere apenas às diferenças culturais de povos, mas também de indivíduos do mesmo país, cidade, bairro, escola e família, pois todas essas pessoas tiveram experiências únicas, fazendo delas seres humanos distintos. A curiosidade e o respeito a comportamentos, valores e crenças que diferem do nosso devem ser incentivados em sala de aula, assim como a intolerância, o preconceito e estereótipos negativos (frutos da ignorância) devem ser contestados e combatidos.

A partir do momento em que saibamos que compreender outra cultura nos faz refletir sobre as nossas próprias, estaremos preparados para aceitar e participar de um processo de desconstrução de identidade versus aceitação da diferença.

Hoje, educadores que busquem por oportunidades de explorar diferenças identitárias e promover a individualidade de alunos, a fim de enaltecer atitudes de aceitação e respeito para com diferentes comportamentos em suas salas – seus campos de ensino, devem desenvolver mecanismos importantes para que possamos nos relacionar de uma forma mais pacificadora em momentos tão adversos.