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A ficção científica como espelho social

Quem já passou por uma faculdade de Letras está familiarizado com certa animadversão existente em relação ao gênero Sci-Fi (ficção científica) por considerar que ele pouco explora a linguagem poética e que carece de significância simbólica. No cinema, acontece algo parecido, sobretudo dentro dos círculos mais fechados da crítica. Mesmo assim, o gênero tem instigado muitos diretores a produzirem seus próprios filmes.

Truffaut o fez em Farenheit 451; Kubrick em 2001: Uma Odisseia no Espaço; Tarkovsky em Stalker e Solaris; Riddley Scott em Blade Runner e Alien; bem como Terry Gilliam, Steven Spielberg, George Lucas… Enfim, uma lista abrangente de afamados diretores de prestígio inegável.

Entendendo a mitologia grega como produção cultural da nossa antiga forma de civilização, poderíamos dizer que o relato Sci-Fi no cinema (uma de nossas tecnologias de comunicação contemporâneas) tem funções e propósitos equivalentes: criar sentido, produzir ideologia, normatizar condutas, além de, claro, produzir estética e entretenimento.

Para Jung, o imaginário do mundo marciano pode ser considerado como uma nova forma de contato místico: o circular dos discos voadores representa o divino, tripulados por entes com uma tecnologia, psicologia e intelectualidade superior e que trazem mensagens esclarecedoras para nós como raça e como indivíduos. Essa seria a gnose contemporânea que fundamenta um percurso de percepção esotérica da verdade – acreditar nesses seres superiores improváveis.

Cena do filme “It Came from Outer Space” de 1953 / Foto: Divulgação

Para Barthes, o mito marcianio, durante a guerra fria, foi a receita prática para alimentar e fazer crescer a paranoia preexistente a respeito do avanço do comunismo desde a União Soviética. Filmes como “The War of the Worlds” (1953); “It Came from Outer Space” (1953) – e a grande maioria dos filmes considerados de classe B Sci-Fi – alimentavam o macartismo e a paranoia.

Um exemplo claro hoje, além de Star Wars (verdadeira ode ao maniqueísmo), seria “The Independence Day”, um filme com uma agressividade simbólica e ideológica como poucos, chegando a sugerir um presidente norte-americano como líder de um esquadrão de aviões que combate alienígenas que almejam nossa destruição como raça.

No filme, mais uma vez os EUA se valem da indústria cultural para a construção da autoridade. E são necessárias novas leituras para develar que não só dentro do capitalismo a cultura (do conformismo) funciona como fachada para estratagemas politicas de poder autoritário, estimulando sentimentos como a xenofobia e o nacionalismo, ferramentais de controle desde a instituição do Estado Nação.

O cinema como produção mítica

Na mitologia grega, percebe-se uma naturalização das hierarquias e das tradições. Os gregos não estiveram isentos de utilizar a religião como instrumento político: todo herói pertence de algum modo à nobreza, e em todos os casos a desobediência aos deuses repercute numa desgraça iminente.

A partir de diferentes disciplinas, Barthes, Jung e Lévi-Strauss propuseram que enxerguemos a produção mítica não como produto de um pensamento primitivo, mas como um relato que reflete a representação do nosso eu mais essencial. O sci-fi, nesse sentido, pode ser usado como instrumento de governo, de forma consciente e inconsciente, dependendo da circunstância de sua produção. Dentre as teorias críticas, encara-se o mito como produção cultural de cunho político.

Em 1902 estreava o filme “Viagem à Lua” de Méliès (assista abaixo), considerado o primeiro filme de ficção científica da história do cinema. O relato baseia-se num romance de Júlio Verne, aonde se retrata uma comunidade científica que organiza uma viagem até a lua numa cápsula em forma de bala disparada por um canhão gigante. Contextualizado, o filme é um reflexo do otimismo pelo avanço da tecnologia e da ciência da época.

Logo, Méliès se apoia no romance “The First Men in the Moon”, de Wells, para dar vida aos selenitas, primeiros alienígenas a aparecerem na tela grande, e que levam esse nome em homenagem à mitologia grega. Eles são os moradores da lua que recebem com hostilidade aos astronautas. Na antiga Grécia, acreditava-se que no além-mar existia todo tipo de perigos e criaturas sobrenaturais. Todos os relatos de viagens marítimas foram enfeitados com aparições de bestas e seres mitológicos.

Anos mais tarde, o materialismo daria seu primeiro filme Sci-Fi com o impressionante “Metrópolis” (Fritz Lang, 1926), o filme mais caro produzido na Europa até aquele então. O futuro do homem não é descrito aqui com uma paisagem pós-apocalíptica, sem alienígenas nem viagens ao espaço exterior. Para Fritz Lang e Thea von Harbou (sua esposa e criadora original do roteiro), o futuro da humanidade está caraterizado por uma gritante opressão da burguesia sobre a classe trabalhadora, relegada a morar embaixo da terra, entregando suas vidas para dar funcionamento a uma máquina monstruosa chamada de Moloch (demônio da tradição cristã que devora crianças ou “inocentes”), e que representaria um enorme complexo industrial.

Em Metropolis, sci-fi de Fritz Lang (1927), é retratado o ano de 2026 / Foto: Divulgação

O argumento do filme é de caráter ostensivamente messiânico, com inúmeras referências à bíblia e com uma intencionalidade clara de subverter ou reescrever um novo relato épico de um messias que logra liberar o homem da opressão que ele mesmo criou para sim. Campbell entendeu que em todas as narrativas épicas da nossa produção cultural existe algo chamado de “A Jornada do Herói”: um padrão narrativo que subjaze nos grandes relatos míticos da nossa civilização (Cristo, Moisés, Buda, tantos outros).

Cinema, sociedade e controle

Vemos, em filmes como “Matrix” (Wachowski Brothers, 1999), mecanismos da sociedade disciplinar de Foucault. Sabemos que somos manipulados pela propaganda na sociedade de consumo – que estimula sem piedade nossos sentidos – mas não sabemos quem exatamente arquiteta tudo isso. A realidade virtual cumpre a função de sedar a nossa psique com prazer, entretenimentos, jornalismos a vácuo, ao passo que esconde os detentores do engano que nos envolve. Em “Matrix”, Morpheus (o deus do sono na mitologia grega) explica: você precisa entender que a maioria destas pessoas não está preparada para despertar.

Morfeu – deus grego do sono – esculpido por Jean-Antoine Houdon em 1777, na França / Foto: Divulgação

Em Alien, é a perversa construção da maternidade que dá vida a um dos monstros mais icônicos do cinema recente, quem entra em cena explodindo as entranhas dos seus hospedeiros. O filme de Scott começa com um chamado enganoso, aquele que as sereias faziam aos navegantes mais desprevenidos e que apenas Ulisses conseguiu ouvir e sair com vida. O escritor argentino Enrique Sims disse em entrevista: “eu assisti Alien e queria muito por momentos odiar o monstro e sentir pena pela tripulação indefesa, mas quantas vezes já fui aquele mesmo monstro faminto pululando da escuridão?”.

Através do cinema, é possível compreender a verdade como uma ficção que esconde mais ficção por detrás de sua quarta parede. É importante, ao analisarmos a narrativa Sci-Fi, percebermos suas estruturas retóricas, suas alegorias e construções arquetípicas. Tomando conta da maior parte das produções de seriados online, a manipulação científica com sua paranormalidade extraterrena e realidade distópica oculta o poder da normalização dos padrões de conduta e de certa visão maniqueísta das relações sociais. Essas são talvez as leituras que mais deveríamos realizar ao adentrarmos as salas de cinema.

Quem, dentro da Matrix – antes da aparição de Morpheus, deu a Neo a sensibilidade para abraçar a mensagem revolucionária que o colocaria como libertador da mentira virtual que oprimia a experiência humana? Se é de dentro da Matrix que se adquire a educação necessária para a rebelião, não seria em parte desejo da Matrix ser destruída? Não seria desejo e papel de toda cultura totalitária de ser aniquilada – para que o avanço cultural seja possível?

Camada por camada, através de realidades justapostas, viajamos para dentro e fora das telas, nos sabemos espectadores vulneráveis pelos monstros que habitam os labirintos da psique, nosso estranho além. Percebamos os medos que não se alteram desde as primeiras produções míticas da nossa civilização e façamos uma leitura atenta da ficção para pensarmos de maneira crítica sobre o que nos separa da emancipação plena.

Retomando a jornada de Neo, sabendo-se como uma produção cultural e linguística, a resistência está ao alcance das mãos – na escolha da charada/resposta e da verdade/pílula.