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Fake News

Durante as últimas décadas, houve um aumento no uso de tecnologias digitais e indivíduos puderam explorar diversas facilidades que a internet oferece, como vídeos, bate-papo, blogs, fóruns, entre outras, onde novas formas de comunicação foram adotadas através de diferentes gêneros discursivos para diferentes propósitos e a expressão de ideias díspares foi acentuada significativamente. Desta forma, qualquer pessoa pode ser lida, ouvida e levada em consideração, o que é extremamente enriquecedor, pois ainda vivemos numa nação democrática.

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Porém há um reflexo que pode ser perigoso das consequências causadas por essas “tempestades de ideias”, que são as Fake News ou Notícias Falsas, postagens/comentários geralmente em redes sociais que não possuem quaisquer fundamentos teóricos ou científicos, com base numa interpretação equivocada, para não dizer patológica, de determinados grupos que nunca perpassaram seus pequenos universos, onde afirmam e juram que seus discursos enganosos e rudimentares sejam a única verdade, o correto, ou ainda arriscam-se nomear algum Deus para falar do “bem e do mal”.

Quando se trata do bem e do mal, do certo ou errado, me recordo de Dostoiévski, autor de “Crime e Castigo”, um clássico da literatura russa, que trouxe através do inquieto e perturbado Raskolnikov um crime como uma questão aritmética entre “o bem o mal”.

Fiódor Dostoiévski foi um escritor, filósofo e jornalista do Império Russo, considerado um dos maiores romancistas e pensadores da história / Foto: Divulgação

Em outras palavras, o protagonista do romance comete um crime em que acredita estar fazendo um “bem” para a comunidade, pois matou uma pessoa que considerava ser “má”. Ele carrega um enorme fardo psicológico que é refletido pela debilidade de sua saúde física e mental no decorrer do enredo. A sua inquietude nos mostra paradoxalmente o seu lado “bom e mau”, ao longo de seus pensamentos, sua vulnerabilidade vista como vil e suas atitudes por vezes magnânimas.

Tal personagem, que é ex-aluno do curso de direito de uma universidade em St. Petersburgo, escreve um artigo classificando indivíduos entre “ordinários e extraordinários”. Em seu artigo, ele afirma: “os ordinários devem viver na obediência e não têm o direito de infringir a lei porque eles são ordinários. Já os extraordinários têm o direito de cometer toda a sorte de crimes e infringir a lei de todas as maneiras precisamente, porque são extraordinários”.

Embora se trate de uma situação extrema representada por um crime hediondo, percebo que Dostoiévski, através da ficção, faz uma analogia a certos comportamentos, onde tenta provocar os leitores com questões filosóficas no decorrer da obra, a fim de convidá-los a refletir sobre “verdades” que muitas vezes nos são impostas durante a vida. Por conseguinte, quaisquer leitores que entram no mundo da imaginação, conseguem perceber as “razões” e autojustificativas do protagonista para determinado comportamento.

Voltando à vida real e paralelamente à literatura, por outro lado, é possível perceber grandes matanças no mundo inteiro em nome de Deus, onde há linhas de raciocínio que são incoerentes e incabíveis, refletidas pelo “bem e o mal” ou “o certo e o errado”. E tais conceitos são indiscutíveis, levam a fundamentalismos perigosos, frutos da ignorância, com base numa única “verdade”, providos de uma normatização advinda do medo do desconhecido e especialmente da falta do pensamento crítico, do qual discursos clichês e simplistas acabam predominando.

No universo virtual, onde há fácil liberdade de expressão, percebo que por vezes são disseminadas inverdades por meio de interpretações equivocadas e ideias conservadoras, sem embasamento teórico e científico do assunto em pauta. E o perigo vai um pouco além, quando também observo um número exacerbado de seguidores de tais discursos mal-arranjados, trazendo uma histeria coletiva através desses pensamentos homogêneos, “corretos, verdadeiros, e do bem”.

Em 2017, uma histeria coletiva iniciou no ambiente virtual a partir da performance “La Bête”, onde o artista fluminense Wagner Schwartz aparece nu, deitado em um tablado, e os espectadores são encorajados a tocar e interagir com seu corpo / Foto: Divulgação

Tanto a obra prima de Dostoíévski que foi escrita no século retrasado, trazendo questões filosóficas por vezes profundas, como o mundo contemporâneo, usufruído por eficientes máquinas tecnológicas que são retratadas em diferentes formas de comunicação são oportunidades preciosas para a reflexão.

O pensamento crítico, através de leituras/textos (literários ou não literários) é a maneira mais eficaz de pensarmos de forma lúcida, estarmos preparados para contestar e obtermos a libertação daquilo que nos é imposto, mediados por discursos fabricados e autoritários. E partindo dessa premissa, já se sabe através de pesquisas que as probabilidades de disseminação de uma notícia falsa e/ou interpretada erroneamente, são muito maiores do que uma notícia verdadeira que por vezes requer uma leitura minuciosa e uma reflexão crítica do tema discutido.

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No nosso país, há um grande número de analfabetos funcionais, assim como pessoas escolarizadas que dificilmente leem e apenas passam os olhos nas manchetes de textos e já os compartilham. E ainda pior, ingenuamente ou não, acreditam em qualquer discurso pronto por muitas vezes terem apatia ao pensamento independente e autônomo, portanto se torna mais fácil e confortável alguém “raciocinar”, decidir e “se preocupar” por elas, comportamento provindo de uma sociedade patriarcal.

No filme “F for Fake” (1973), Orson Welles revela em tom ensaístico, mesclando filosofia, religião, psicologia e códigos, as verdades e mentiras nos jogos da arte / Foto: Divulgação

Assim sendo, concluo com uma passagem do historiador e escritor do livro “Zona Autonôma Temporária” Hakim Bey em que ele nos convida a refletirmos sobre o pensamento independente e autônomo: “Estamos nós, que vivemos no presente, condenados a nunca experimentar a autonomia, nunca pisarmos, nem que seja por um momento sequer, num pedaço de terra governado apenas pela liberdade? Estamos reduzidos a sentir nostalgia pelo passado, ou pelo futuro? Devemos esperar até que o mundo inteiro esteja livre do controle político para que pelo menos um de nós possa afirmar que sabe o que é ser livre? Dizer ‘só serei livre quando todos os seres humanos (ou todas as criaturas sensíveis) forem livres’, é simplesmente enfurnar-se numa espécie de estupor de nirvana, abdicar da nossa própria humanidade, definirmo-nos como fracassados”.

Que saibamos, portanto, usufruir da liberdade de pensamento enquanto ainda nos é permitido.