“No íntimo da sua alma, contudo, esperava um acontecimento. Como os marinheiros aflitos, percorria com os olhos desesperados a solidão da sua vida, procurando ao longe alguma vela branca nas brumas do horizonte. Não sabia ela qual seria esse acaso, o vento que lhe traria para perto, nem para que praia se sentiria levada, se seria chalupa ou navio de três pontes, carregado de angústias ou cheio de felicidades até às escotilhas, mas todas as manhãs, ao acordar, esperava que viesse naquele dia e escutava todos os ruídos, levantava-se em sobressalto, surpreendia-se de que não tivesse vindo; depois, quando o sol se punha, cada vez mais triste, desejava estar já no dia seguinte. ” (Trecho da obra)
Em 7 de fevereiro de 1857, Gustave Flaubert era absolvido da acusação contra o seu livro Madame Bovary, considerado altamente imoral e uma ofensa à religião pelas autoridades francesas. Dias antes, o escritor teria respondido à pergunta sobre quem seria Madame Bovary: “Emma Bovary c’est moi” (Emma Bovary sou eu).
A polêmica a respeito da obra, provocou ainda mais interesse nos leitores. Embora absolvido judicialmente, o “puritanismo” da época continuou o condenando. O que aconteceu também com os livros Ulysses de James Joyce e Lolita de Nabokov.
Com certeza o julgamento parecia exagerado, muito embora as acusações fossem compreensíveis. Um chute certeiro na boca do estomago da realidade social do século 19: a insatisfação de uma mulher com o seu casamento, a ridicularização dos romances ultrarromânticos e a exposição do adultério, como tentativa de superar as suas expectativas por um cotidiano mais refinado. Sem dúvida um ataque ao clero e a burguesia e o dedo na ferida do adultério.
Madame Bovary é considerado um dos melhores romances da literatura, sendo possivelmente o melhor livro da época realista, de caráter psicológico do século XIX. Reeditado diversas vezes e estreando novos filmes, ainda é procurado pelos seus contemporâneos.
O autor era um perfeccionista: ele descrevia sobremaneira que não ficassem dúvidas a respeito do que se estava narrando. Sempre “a palavra certa, precisa” (“le mot juste”). O romance levou cinco anos para ser escrito (em média 16 horas por dia), embora não seja muito extenso. Ele ansiava o verso imutável! “O romance perfeito”, segundo Henry James.
O escritor é considerado precursor do realismo francês, oposto ao estilo romântico de narração. Entre os autores que fizeram obras nesse estilo, além de Flaubert, estão Honoré de Balzac, Eça de Queirós e Charles Dickens.
“O romance, publicado em outubro de 1856, conta a história de Emma, uma mulher sonhadora pequeno-burguesa, criada no campo, que aprendeu a ver a vida através da literatura sentimental. Bonita e requintada para os padrões provincianos, casa-se com Charles, um médico viúvo do interior tão apaixonado pela esposa quanto chato. Ele não é como os heróis das suas leituras. Nem mesmo o nascimento da filha dá alegria ao indissolúvel casamento ao qual a protagonista se sente presa. Ela espera alguma ação do marido que consiga despertar nela o amor tão sonhado e esperado. Emma, cada vez mais angustiada e frustrada, busca no adultério uma forma de encontrar a liberdade e a felicidade. Não há arrependimento ou reviravolta no livro, nada de redenção, de final feliz. O romance foi considerado cruel por não apresentar saída”. (Milton Ribeiro)
A obra Madame Bovary foi do tamanho da personagem Emma, como disse Flaubert ainda em carta: “O que distingue os grandes dos gênios é a generalização e a criação. Eles resumem em um único indivíduo personalidades esparsas e levam a consciência do gênero humano a personagens novos. Uma alma se mede pela dimensão de seu desejo, como julgamos de avanço as catedrais pela altura de suas torres”.
É esse poder de síntese que encontramos em Shakespeare – referido por Bloom como criador do Humano – e Cervantes. É essa personalidade um pouco vulgar, violenta, luxuriosa e rebelde de Emma expressa a Condição Humana. Emma é uma Don Quixote de saias, cheia de sonhos e esperanças frustradas, correndo atrás de amores falidos ao invés de moinhos de vento. Ainda citando as cartas de Flaubert. Talvez a maior façanha de Flaubert tenha sido criar uma personagem tão pequena e versátil que demonstra essa máxima. Emma, apesar da existência burguesa e insignificante, é uma dessas torres que ressaltam na existência humana; sua alma é um riacho que corre com a intensidade dos oceanos. Nabokov se refere a ela como uma filisteia, uma mulher vulgar. Disso eu discordo, Emma é romântica e, até certo ponto, ingênua – tanto que se deixa enganar pelos amantes -; longe de vulgar, ela é a imagem de nosso ateliê de sonhos quebrados. Nós somos Madame Bovary. (Paulo Cantarelli)
O realismo nu e cru da situação humana da existência desta mulher, fascina pela total incapacidade de ser feliz. Muitas vezes comparada a outra personagem trágica, Anna Karenina, de Tolstói ou Luisa, de O Primo Basílio, Eça de Queirós.
Muito embora a carta escrita por Gustave em janeiro de 1852, enquanto escrevia o romance tenha tido diversas interpretações: “O que me parece agradável, o que eu queria fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculo externo, que se sustentasse por si mesmo, pela força interna de seu estilo, como a poeira se mantém no ar sem que seja sustentada, um livro que quase não tivesse argumento ou, ao menos, cujo argumento fosse quase invisível, se fosse possível. As mais belas obras são as que possuem menos matéria (…). Creio que o futuro da arte está nestes caminhos”.
A única verdade parece residir em: “Emma Bovary c’est moi”
Méroli Habitzreuter – escritora e ativista cultural