Com frequência nossa memória nos faz passar vergonha, geralmente isso não é sinal de nenhuma doença, a própria memória funciona assim num contínuo entre gravar e esquecer.
É como se fosse necessário decidir entre o fundamental que deve ser memorizado e o acessório que tem que ser descartado pra liberar “espaço” para novas memórias, isso porque não temos uma capacidade infinita de memorização.
Na hipótese de que algum ser humano pudesse memorizar absolutamente tudo o que vivencia nos mínimos detalhes, podem ter certeza que sua saúde mental não seria das melhores, é necessário esquecer para poder ter uma boa saúde mental.
Evidentemente não estou falando aqui das pessoas que começam a ter falhas de memória diárias ou frequentes que começam a atrapalhar seu dia a dia, esses casos devem ser investigados pelo médico.
Não há mecanismo mais complexo do que o cérebro humano, formado por 100 bilhões de neurônios que formam 100 trilhões de conexões entre eles, não existe nenhum sistema de computadores que chegue perto disso.
Mesmo assim, o cérebro não tem a capacidade de analisar e memorizar todas as situações que vivenciamos e experimentamos, então tem que “simplificar”, é como se fizesse um resumo de cada experiência. Evidentemente cada humano terá uma “síntese” ou uma lembrança diferente de uma mesma situação, não somente porque são sínteses de cérebros diferentes e sim também porque há sempre o componente emocional daquela lembrança, as emoções dão matizes diferentes a nossas vivências.
Poucos conhecem que das 16 horas que uma pessoa fica acordada vai ter quatro horas com uma cegueira involuntária. Isso porque nossa retina só capta imagens nítidas numa parte chamada fóvea que tem 1 mm de diâmetro.
Para compor a imagem que vemos os olhos ficam se movimentando, são pulinhos que duram 0,2 segundos, captando pontos diferentes que compõem a imagem que vemos. Durante esses pulos o cérebro deixa de receber informação durante 0,1 segundo.
Como nossos olhos dão ao redor de 150 mil pulos por dia, o resultado são 4 horas de cegueira. A gente não percebe isso porque o cérebro preenche essas décimas de segundo de cegueira com imagens que dão uma sensação de continuidade.
Além disso existe outra mágica, a imagem captada pela retina demora 0,2 segundos até chegar no córtex visual, esse atraso pode levar a erros e acidentes, o que o cérebro faz? Ele inventa, analisa automaticamente todas as imagens e fabrica uma nova que está 0,2 segundos na frente.
Em outras palavras, estamos sempre enxergando o “futuro” 0,2 segundos na frente.
O mecanismo descrito é apenas um entre vários que podem fazer com que nem sempre o que lembramos corresponde aos fatos como aconteceram.
A maioria das pessoas pensam que arquivamos nossas vivências na memória do mesmo jeito que se estocam livros numa biblioteca ou fotos num álbum de fotografias, a verdade é que nossa memória funciona de outra forma.
Arquivamos elementos essenciais de nossas experiências e ao lembrar reconstruímos nossas experiências e não resgatamos cópias exatas delas. Neste processo de reconstrução somamos sentimentos e até conhecimentos adquiridos após a vivência original.
Em outras palavras, estamos distorcendo as recordações do passado, essa é a regra e não a exceção.
Se reunirmos um grupo de amigos que dez anos atrás vivenciaram juntos um grande acontecimento, será fácil perceber que cada um vai lembrar o fato de forma diferente, cada um acrescentará detalhes que outros não lembram e/ou lembrará de situações que não aconteceram.
A partir desse compartilhamento de lembranças, a próxima vez que algum deles evocar essa vivência vai lembrá-la de outra forma, esse é o pecado da memória que o psicólogo cognitivo Daniel Schacter chama de distorção, existem outros seis pecados que espero poder abordar em artigos posteriores.
Como somos seres em constante evolução talvez a maior preocupação para o futuro da cognição do ser humano seja o fato que estamos criando gerações que não tem mais apego para ler textos longos como seria a leitura de um romance, que estão mais habituados a aprender com gráficos e tabelas simplificadas ou com um vídeo curto do que ler um capítulo inteiro de um livro técnico, que estão acostumados a executar várias tarefas ao mesmo tempo (todos já presenciamos alguém dirigindo um veículo, fumando e gravando um áudio no celular).
Um estudo recente mostra que executar multitarefas (realizar várias atividades ao mesmo tempo) faz com que diminua a matéria cinzenta (neurônios) no córtex de uma área cerebral chamada cíngulo anterior.
O cíngulo anterior é essencial no processamento da informação, nos ajuda a detectar falhas, contradições ou equívocos. Cíngulos atrofiados significam pouca capacidade de discernimento para distinguir uma verdade de uma mentira.
Isso significa que num futuro próximo o ser humano poderia estar muito mais exposto a ser enganado facilmente pelas mentiras mais absurdas tão frequentes nas redes sociais.
Gabriel Garcia Márquez na sua autobiografia “Vivir para contarla” inicia seu relato com a frase: “A vida não é a que a gente viveu e sim como a lembramos e como a lembramos para contá-la”.
O olhar atento do escritor sobre o comportamento e o pensamento humano teriam proporcionado ao laureado escritor atributos de neurocientista.