Acredito que a profissão de médico seja uma das mais belas do mundo, a sensação de poder ajudar a um semelhante com alguma moléstia na sua saúde é muito reconfortante.

Embora saibamos que não sempre é possível conseguir a cura, o fato de poder aliviar uma dor, um desconforto e ser solidários e ter compaixão pelo sofrimento alheio coloca aos médicos e outros profissionais da saúde numa posição de privilégio e ao mesmo tempo de muita responsabilidade.

As frustrações também fazem parte do nosso dia a dia considerando que existem uma série de doenças que são irreversíveis, progressivas e sem possibilidades de cura.

Permanecem na nossa memória uma série de casos de sucessos e outros que podemos considerar de fracassos porque não conseguimos ajudar na medida que desejaríamos.

Aproveitando este espaço no jornal quero compartilhar com vocês leitores um dos casos mais marcantes na minha prática médica aqui em Brusque.

Tenho nítida na memória a imagem do senhor alto, magro e de meia idade entrando no meu consultório com sua filha de 17 anos no colo, a filha Flora (nome fictício) tinha as pernas flexionadas e com a musculatura nitidamente atrofiada.

A família era do interior do Paraná e tinham feito essa longa viagem porque meu nome tinha sido recomendado por uma parente deles radicada em Brusque.

O relato era que Flora fora uma criança normal até os 7 anos de idade, após essa idade tinha iniciado com uma dificuldade progressiva para caminhar, sendo que no transcurso de 12 meses já não conseguia mais deambular.

O médico que a atendeu naquela época atribuiu essa perda da força nas pernas a um acidente com traumatismo craniano leve que Flora teve com a idade de 7 anos.

Após Flora perder a capacidade de caminhar, passou a frequentar a Apae da sua cidade no Paraná.

Ao examinar a paciente percebi que ela conservava ainda alguns movimentos nos seus pés e que seus reflexos eram absolutamente normais, sendo assim isso não poderia ser sequela de traumatismo cerebral nem medular.

Lembrei de um caso semelhante que tinha visto anos antes num ambulatório de neuropediatria, havia muitas semelhanças.

Pensei que poderia tratar-se de uma doença muito rara descrita por um médico japonês Dr. Segawa em 1971, é tão rara que se considera que existe um caso para cada 2 milhões de habitantes.

Se trata de uma deficiência enzimática provocada por uma mutação no cromossoma 14, isso dificulta a produção de dopamina, neurotransmissor necessário para a atividade motora.

Lembro que dei para a paciente uma amostra grátis dessa medicação que aumentaria seus níveis de dopamina.

Ao terceiro dia a paciente me liga chorando de emoção, contava que poucas horas após tomar a medicação começara a mexer suas pernas, que mesmo com dificuldades (muitos anos em posição de flexão tinham provocado encolhimento e retração de músculos e tendões) estava conseguindo caminhar e mais ainda: era tanta sua empolgação que há duas noites não dormia porque somente queria saber de caminhar e melhorar sua marcha.

A força de vontade dessa paciente foi tanta que nem sequer precisou fazer fisioterapia, após 6 meses caminhava normalmente, sempre em uso da medicação que consistia em meio comprimido ao dia.

Meses depois atendi a uma prima dela, da mesma cidade do Paraná com um caso semelhante, estava alguns anos dependente de uma cadeira de rodas e posteriormente a um tio delas que morava no interior de Rio Grande do Sul e que tinha uma forma mais leve da mesma doença. Todos eles adquiriram marcha normal após o tratamento.

De manera anedótica lembro que, após Flora ter regressado à sua cidade, recebi uma ligação da diretora da Apae, tinham ficado admirados ao ver que Flora chegara à escola caminhando e estava disposta a fretar um ônibus para trazer seus alunos para consultar!

Tive que explicar que era um caso isolado, chamado de Doença de Segawa ou Distonia Dopa responsiva e que o restante dos seus alunos deviam ser casos muito diferentes.

Flora fez curso técnico, arrumou emprego, casou, tem dois lindos filhos e é uma pessoa muito feliz.

Tive a sorte de poder ajudar ela a transformar sua vida, são as recompensas que a profissão médica nos proporciona, são recompensas que não tem preço e que ficarão sempre na nossa memória.