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Democracia e liberdade: crimes ambientais nas entranhas da cidade

por Guto Presta A Democracia mostra-se infiel a si própria; rompeu com as suas origens, vira as costas aos seus destinatários. […] A consciência democrática está vazia: […] Acabaram-se as ideias: em seu lugar, fantasias romanescas, mitos, ídolos. PROUDHON, 2001, p. 38. Outro dia, andando na ciclovia da Avenida Beira Rio e incomodado com o […]

por Guto Presta

A Democracia mostra-se infiel a si própria; rompeu com as suas origens, vira as costas aos seus destinatários. […] A consciência democrática está vazia: […] Acabaram-se as ideias: em seu lugar, fantasias romanescas, mitos, ídolos.
PROUDHON, 2001, p. 38.

Outro dia, andando na ciclovia da Avenida Beira Rio e incomodado com o cheiro entorpecente do agonizante Rio Itajaí-Mirim, reparei um cartaz colado em uma estrutura de concreto da cidade: ‘Sentiu o cheiro do rio?’

Alguns passos a frente e outros dois cartazes, estes mais degradados pelo tempo e rasgados, aparentando tentativas de remoção, diziam: ‘Crimes Ambientais nas Memórias da Cidade’ e ‘Poluição e Descaso nas Memórias da Cidade’.

Arte urbana ou propaganda intervencionista?

Na hora ficou evidente como essa afirmação pode causar impacto em Brusque ao ponto de alguém se afetar e tentar arrancar aquela intervenção urbana de arte ativista. Mas será mesmo arte? Talvez propaganda intervencionista, progressista, de oposição, experimental, crítica, politizada, sociopolítica, de confronto, subversiva, radical, ativismo performativo ou cultural.

Talvez ‘apenas ativismo’ e tudo bem, afinal vivemos em uma democracia com liberdade de expressão. Mas quem (e porque) dedicaria tempo a se sentir livre – e arriscar sua liberdade – para produzir e colar cartazes que afirmam coisas tão óbvias em nosso contexto brusquense? E – de tão óbvias – como podem essas coisas continuarem assim?

Afinal, com mais de 160 anos de história, todos sabem sobre os crimes ambientais da cidade, todo mundo percebe e convive com a poluição, todos são atravessados pelo cheiro do Rio em seu cortejo fúnebre.

Absorto nesses pensamentos escutei, de passagem, um casal que conversava efusivamente e professava uma frase que desencadeou um paradoxo que aprisionou minhas ideias, estabelecendo profundas relações com as frases dos cartazes que eu tinha visto recentemente: “Pra defender a democracia e a liberdade, temos um exército ao nosso lado”.

Mas se um exército entra em ação, a democracia e a liberdade deixam de existir, ponderei silenciosamente. Até que ponto a democracia representativa e a mera liberdade de expressão alcançam o potencial transformador para reverter situação tão drástica em que passamos normalizar a degradação da nossa fonte de água potável, essencial à vida, e aceitar que passemos a consumir, através dela, um coquetel de esgoto sanitário, agrotóxicos e produtos químicos de dejetos industriais?

Como podem os conceitos de democracia e liberdade estarem tão presentes em nossos debates cotidianos e ao mesmo tempo serem utilizados de formas tão contraditórias e limitadas?

Na tentativa de refletir acerca da amplitude, talvez inalcançável ou interminável desses dois termos, e relacionar com o problema da poluição do Rio Itajaí Mirim, pensando como a arte ativista pode reivindicar esse debate na cidade, inicia aqui uma sequência de dois textos.

Arte urbana ou propaganda intervencionista?

O apelo visual dos cartazes era pesado, caracterizado pelo uso dos tons de preto e branco nas imagens, remetendo à cidade cinza, o clima lúgubre que se impõe com a banalização dos crimes ambientais, da necropolítica, do racismo ambiental e descaso nesse desastre permanente e irrecusável.

Como crer que após 160 anos de agravamento dessa situação o sistema político-econômico que dominou a democracia representativa possa dar vasão a essas demandas?

Existem limites seguros?

Da democracia à representação: uma leitura do abismo em que caímos.

Vivendo um tempo de catástrofes ambientais, sociais, econômicas e políticas que parecem levar-nos à terra inabitável, entre guerra, pandemia, mudanças climáticas e ameaças constantes de golpes políticos e militares, a ideia de democracia como equivalente a liberdade (e vice-versa) reiteradamente vem sendo reivindicada, muitas vezes para defender o indefensável.

Entre o entendimento popular e a compreensão dos representantes políticos a ideia da democracia assume as mais diferentes formas, inclusive, paradoxais.

A proposta deste texto é analisar alguns paradoxos da democracia e seus referentes no tempo contemporâneo, observando influências do capitalismo na democracia representativa a partir deste projeto de arte ativista executado em Brusque.

Em traços gerais, democracia é um regime político e social em que todos os cidadãos considerados elegíveis podem participar igualmente, de forma direta ou participativa na criação e desenvolvimento de leis, exercendo o poder de escolha através de voto.

No processo histórico de transformação da teoria e prática democráticas, diferentes modalidades de democracia foram experimentadas, divergindo com relação às formas de colher, mensurar, e aplicar a vontade coletiva, bem como com relação ao exercício da soberania popular.

Os tipos de democracia mais resistentes às transformações citadas são a democracia direta (ou participativa, onde o envolvimento popular é mais ativo e efetivo na tomada de decisões, método original e prevalecente em Atenas) e a indireta (ou representativa, modelada para funcionar em grandes territórios e populações numerosas, facilitando o jogo de interesses).

Notório pesquisador do tema, Norberto Bobbio (2000) entende que assim como toda democracia não é necessariamente representativa, nem todo Estado representativo é democrático pelo simples fato de ser representativo.

O autor explica uma correlação histórica entre a aceitação popular da representação devido à propaganda e persuasão pública de que os candidatos eleitos como representantes estariam mais preparados para aferir, compreender e pautar quais seriam os interesses gerais dos cidadãos.

Tenho a impressão que é de interesse geral dos cidadãos de Brusque a conservação da fonte de água potável da cidade. Mas o cheiro do rio e o visual da poluição, associados ao fato de a cidade não possuir rede de tratamento de esgoto desde sua fundação, deixam claros que este interesse essencial e vital não está sendo representado de maneira efetiva.

Pelo fato de as pessoas estarem envolvidas demais na administração de suas próprias demandas particulares, criam uma bolha em torno da vida pessoal muito específica de cada um, fazendo com que fiquem muito ligadas em seu bem-estar restrito. Ficam muito focadas na sua vida, nas suas propriedades, nos seus projetos, nos seus bens, de modo que se afastem do real exercício da política.

Assim, tendem a aceitar a existência de um governo despótico, desde que este garanta seu bem-estar, sua propriedade privada, sua ‘liberdade’.

Para Toqueville (1977), o envolvimento com essa estreita noção moderna de liberdade individual faz as pessoas se afastarem da concepção grega de liberdade, no sentido de falar nas assembleias e participar ativamente da esfera pública.

A filósofa política Hannah Arendt, ao longo de suas obras, mas especialmente no livro “Sobre a Revolução” (2011) faz inúmeras reflexões sobre as formas como a democracia representativa contribuiu para a pasteurização da compreensão e do exercício da política popular e consequentemente para a formação de uma sociedade de massas.

Arendt critica o projeto de “apolitização” do povo e o afastamento dos cidadãos dos assuntos de governo, basicamente porque as decisões políticas e legais passaram a ser incumbências de um pequeno número de especialistas da administração pública, o que é próprio do método da democracia representativa.

Ou seja, se uma das principais marcas da democracia é o exercício do poder pelo povo, já se torna um paradoxo entregar esse poder de prática política nas mãos de um representante.

A liberdade política se reduz à obrigatoriedade de votar esporadicamente para escolher os candidatos que, em teoria, deveriam representar o povo.

Surge, assim, uma separação social, econômica e política entre os representantes e os representados. Forma-se um grupo distinto de pessoas que exercem a política eleitoreira como profissão, o que desfavorece o revezamento entre representantes e representados, boicotando o ideal democrático original.

Dessa maneira, se dá uma abertura muito grande para que possa ocorrer um governo representativo do agente político, dos partidos e dos financiadores de campanhas eleitorais.

Portanto, a simples ação de votar não garante uma sociedade democrática.

Marques (2009, p. 47) ressalta que “para a garantia de que a sociedade seja democrática, há a necessidade de liberalização (contestação pública das decisões governamentais) e de inclusividade (participação nas decisões políticas na esfera pública)”.

Assim, ao abrir mão da participação nas tomadas de decisões, as pessoas afastam-se dos seus direitos políticos em detrimento do direito de exercer uma liberdade individual e egoísta, de se ocupar apenas com suas demandas particulares, abrindo campo para toda sorte de manipulação nos debates e estabelecimento das leis que estas mesmas pessoas vão ser obrigadas a seguir.

A questão ambiental tem se mostrado o grande desafio para as democracias representativas, quando ocorrem em períodos de curto prazo como no Brasil – quatro anos – pois os políticos geralmente tem uma visão imediatista focada na próxima eleição. E os temas da poluição e aquecimento global, por exemplo, necessitam, de mudanças radicais agora para ter efeito no longo prazo.

Arte urbana ou propaganda intervencionista?

Fui seguindo a rota dos cartazes, uns maiores, uns menores, colados em postes nas vias de circulação de pedestres nos arredores da universidade, seguindo pela beira rio na direção dos terminais de ônibus da cidade, nas imediações dos pontos de ônibus, atravessando o viaduto que leva ao terminal de ônibus interurbano.

Não podia deixar de pensar na carga de desobediência civil e ação direta que marcavam essa proposta. A cidade de Brusque tem cerca de 160 anos de história e nunca registrou uma ação política efetiva para a problemática da contaminação do Rio.

Até quando vamos assistir o teatro da política eleitoral encenando textos decorados como um método de gestão, emoldurados por interesses partidários e particulares e roteirizados por que paga a conta e engrena a economia?

No campo do pensamento político, percebo que este trabalho arte ativista representa esse isolamento popular da política tradicional organizada na democracia representativa. Por outro lado, parece um projeto inspirado e motivado pela ação direta.

A livre-pensadora Voltairine de Cleyre (2009, p. 3), ponderando os fundamentos da ação direta entende que:

“Qualquer um que sempre pensou por si próprio, que usou seu direito de livre expressão, e corajosamente reafirmou isto juntamente com outros que compartilham de suas convicções, foi um praticante da ação direta. […] Toda pessoa que planejou fazer qualquer coisa, e foi e fez, ou pôs seu plano em execução antes de outros, e ganhou a cooperação e colaboração de outras pessoas, sem apelar para autoridades, pedir licença ou agradá-los, foi um praticante da ação direta. Todas as experiências de cooperação são essencialmente ação direta”.

Portanto, a ação direta é uma ação política. Ao longo da história, todo movimento político efetivo usou algum método de ação direta, desde lutas por abolição da escravidão, passando pela conquista da jornada de trabalho de oito horas, ao direito de voto das mulheres.

Então, a ação direta pode ser um cimento para outras formas de ação política, funcionando inclusive para sublinhar a necessidade de reformas institucionais.

Em nossa sociedade dominada pelo corporativismo que se estende desde os domínios operados sobre os meios de comunicação ao financiamento das campanhas políticas eleitorais, é quase impossível iniciar um diálogo público sobre um problema, a menos que algo aconteça para chamar a atenção para ele.

Nessas condições, a ação direta pode ser um meio favorecido pela liberdade de expressão e também um propulsor dela. Se entregamos a responsabilidade da nossa ação política efetiva nas mãos de representantes políticos eleitos e percebemos, por exemplo, que o interesse comum pela preservação da fonte de água potável da cidade não é representado, que formas temos/podemos/devemos usar para manifestar essa demanda, essencial à sobrevivência?

Essa questão da ação direta retoma alguns paradoxos da democracia representativa. Acompanhando o pensamento de Cleyre (2009) percebemos que o principal malefício provocado pela confiança na ação política indireta é que destrói a iniciativa transformadora, extingue o espírito de luta de cada indivíduo, convencendo os cidadãos a confiar em outra pessoa para realizar para eles o que deveriam fazer por si próprios.

A crença no sistema representativo torna orgânica a ideia bizarra e ingênua de que agregar simbolicamente uma multidão inerte, até que se torne uma maioria, possa fazer com que a inércia seja transformada em energia.

Neste trabalho observado em Brusque a ação direta utiliza o recurso da arte ativista para manter vivo o debate sobre a poluição do Rio e, aparentemente, instigar que as pessoas se incomodem com isso, de modo a mobilizar uma cobrança de transformação ou, ao menos, confrontar e denunciar o descaso.

Alegar que pode soar por demais antissocial ou desadequado, rotulando como vandalização esse tipo de proposta de intervenção urbana com lambe-lambes valida, sutilmente, a violência que se comete contra o Rio e, consequentemente, contra os seres humanos, os seres vivos e toda incompreensível Natureza.

Ainda, o fato de esse tipo de intervenção urbana ser ilegal ou não, não é uma boa medida para se determinar se é justo e ético ou não. Acompanhando o pensamento de Thoreau (2012), ao ponderar a desobediência civil, entendemos que a submissão cega a lei nunca fez os homens mais justos, mas pode levar, até mesmo os mais bem-intencionados, a agir como mensageiros da injustiça.

Se cada homem for capaz de se engajar para expressar o tipo de governo capaz de ganhar seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo. Todos os indivíduos deveriam reconhecer seu direito à revolução – fagulha essencial da liberdade – recusando obediência a leis injustas ou a intoleráveis gestões políticas de governos ineficientes e tiranos.

Ainda em 1849, quando Thoreau escreveu A Desobediência Civil, para combater injustiças do estado como a manutenção da escravidão ou a realização de guerras, o autor sugeriu que se os cidadãos deixassem de pagar seus impostos como modo de manifestar uma insatisfação ou cobrança ao governo, essa poderia ser a definição de uma revolução pacífica, se tal coisa é possível.

Em um governo negligente ou criminoso, quando o súdito recusa sua submissão e o funcionário se demite do cargo, a revolução se consuma. Toda tempestade inicia com uma gota de chuva. E para quem rotular como utopia, fica o convite a pensar, conflitar os paradigmas, para imaginar, sonhar e construir novas perspectivas, outros mundos de vidas possíveis.

Aquilo que não pode ser sonhado, também não pode ser vivido.