X
X

Buscar

Beleza é crueldade: o cinema de Kim Ki-Duk

“A luta, o ciúme, o ódio, o perdão, a compreensão e assim por diante, já existem na natureza, é isso que meus filmes pretendem mostrar.”
Arirang, Kim Ki-Duk, 2011.

Transcorre o primeiro Festival de Veneza do século, ano 2000. A plateia assiste a estreia de “Seom”, quarto longa-metragem de um diretor coreano do qual muitos cinéfilos já falam sem poupar elogios. Seu nome é Kim Ki-Duk. Durante a exibição do filme, algumas pessoas saem da sala indignadas e outras não podem conter o vômito e o nojo que as várias cenas de violência sexual e masoquista provocam repetidas vezes, de forma abrupta. Após a exibição, ninguém consegue negar a potência poética do filme, o qual suscita uma ansiosa curiosidade no resto da filmografia do asiático.

Seom trata do vínculo amoroso, inédito, entre uma mulher e um misterioso fugitivo da polícia que visita a ilha que ela cuida. O lugar, fotograficamente extraordinário, está cercado por casas flutuantes aonde outros pescadores vão passar o tempo e transar com as prostitutas que a mulher fornece. Apesar de ter salvado ele da morte, ela não consegue trazer, com seu amor e sexo, esse misterioso homem de volta à realidade.

Uma disputa universal entre o feminino e o masculino parece acontecer aqui: em tantas outras representações das relações de gênero uma mulher precisa salvar um homem da própria tragédia em que se encontra envolvido. O feminino exerce uma misteriosa piedade aqui, seu velho arquétipo universal que se repete invariável em todas as épocas como a pedra do Sísifo sobe e cai invariavelmente sem saber qual o propósito da sua cíclica existência.

A Ilha, 2000 / Foto: Divulgação

É uma constante nas narrativas de Kim Ki-Duk que todo personagem progrida (se transforme) em seu interagir com o outro, como na base fundamental budista: “somos na nossa relação com o mundo”. Característica mais que importante também do pensamento estruturalista iniciado pelo linguista Ferdinand de Saussure: não poderíamos nos definir se não nesse inter-relacionamento com o que não somos.

Tudo isso é contado, no filme, com uma quase ausência total de diálogos. Os diálogos, a palavra, é um recurso retórico mais no relato cinematográfico, recurso do qual Kim Ki-Duk prescinde para dar espaço a um livre proceder dos corpos físicos e psíquicos dos personagens. Sempre inerente, é o caos psicológico que faz a mulher enfiar um anzol numa parte íntima, cena de brutal conteúdo simbólico.

“Hoje em dia a gente fala demais. Muitas palavras são pronunciadas, muitas promessas não cumpridas que destroem a nossa beleza interior. O silêncio preserva essa beleza, a mantem pura” – Kim Ki-Duk

Existe uma estética da automarginalização nos personagens do asiático, intrínseca à qual o diretor vive há muito tempo. Os espaços afastados – os não lugares – são também um recurso recorrente na sua narrativa. É nesse tipo de cenário que a tragédia humana se faz mais extemporânea, mais universal.

Ali, toda poluição cultural particular diminui ao ponto de não fazer perder de vista que as paixões humanas são análogas a todas as eras e em todas as latitudes. Não existe, claro está, uma vontade realista ou neorrealista na narrativa do diretor. Seu foco sempre está nos impulsos humanos, nas atitudes arquetípicas dos sexos e das sexualidades, e nas possíveis consequências que elas têm na sua interação profunda.

Casa Vazia, 2004 / Foto: Divulgação

Já em “Bin Jip”, ou “3 Iron” (2004), talvez o filme melhor logrado para a narrativa do diretor, esse interagir acontece entre dois personagens que moram nas sombras do social. Desde as sombras, voltam para as sombras. Em “Hwal” (2005), ou “The Bow”, o isolamento dos personagens, uma jovem comprometida com um velho pescador, é interrupto pela aparição de um jovem burguês da cidade um tanto idealizado. Talvez a mensagem seja que um isolamento não proposital nunca teria sucesso, o isolamento sempre é uma postura política, uma estética ciente do hábito.

Em “Shi Gan” (Time, 2006), os ciúmes exercem uma violenta conturbação em uma mulher que acredita que perderá o marido de forma irremediável. Isto a faz entrar em um conflito brutal contra sua própria identidade. Os ciúmes estão presentes também em outros filmes do autor, estremecendo os corpos e as psiques, provocando a ação necessária para provocar conflitos. Os ciúmes, temível doença psíquica da condição humana, são para Kim Ki-Duk, mais um elemento enriquecedor das narrativas. Um trecho desse esclarecedor livro de Barthes é sumamente necessário para entender de quanto transtorno é capaz o monstro dos ciúmes:

“Como ciumento eu sofro quatro vezes: por ser ciumento, por me culpar por ser assim, por temer que meu ciúme prejudique o outro, por me deixar levar por uma banalidade; eu sofro por ser excluído, por ser agressivo, por ser louco e por ser comum.”
Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso, 1977

A violência do cotidiano, a violência da posse e o contraste entre a vida moderna consumista e os valores esquecidos do budismo, junto á contradição de uma prática religiosa inconsistente, burocratizada, são preocupações em Kim Ki-Duk. Elas estão nos extremos aos quais podemos chegar mergulhados em nossa condição humana. Qual o limite da violência e do sadismo, do desejo de vingança, que percebemos em Pieta? E qual é a possibilidade de praticar, efetivamente a piedade?

Se, para Derrida, o perdão é impossível porque só teria validez ética se perdoasse o imperdoável, para Kim Ki-Duk a piedade é perfeitamente possível quando é nossa condição essencial, a que precisa se manifestar a partir da prática do bem, no sentido mais aristotélico do conceito.

A alma humana (qualquer alma) é capaz de nos apaixonar de tal modo em que podemos perdoá-la e exercer piedade sobre ela, mesmo quando ela é responsável por atrocidades imperdoáveis que nos afetam da forma mais íntima e pessoal. Para Kim Ki-Duk, virando a lógica Derridiana, o perdão é possível porque é possível o imperdoável.

Pietá, 2012 / Foto: Divulgação

A água é discreta e se amolda a qualquer recipiente. A água traz vida, permite o passo da luz, é transparente no seu estado puro. A água é a alma no seu pleno estado de harmonia e paz. As quatro estações de “Primavera, Verão, Outono, Inverno… e Primavera” (2003), pretendem ser as quatro estações de conhecimento pelo que atravessa todo ser consciente. Uma exaltação da disciplina que impõe a prática religiosa. Disciplina enquanto caminho para atingir um degrau superior de iluminação.

Para muitos críticos, um filme excessivamente entediante. O tédio é aquilo do qual oferecem-nos fugir o tempo todo no nosso capitalismo consumista. Para Slavoj Zizek, vivemos a era das experiências: a publicidade nos oferece “momentos de prazer” nos quais conseguimos sair da angústia que é provocada por sermos parte produtiva do capitalismo.

No filme, numa espécie de olimpo sagrado oriental, o mestre ensina o valor fundamental do círculo da vida. O mestre orienta, o discípulo tenta seguir o caminho. São duas máquinas desejantes que se acoplam, que se conectam para produzir um sentido. O círculo da vida não é o conceito a priori que o mestre entrega para a emancipação do discípulo. O círculo, necessariamente, são os erros do aprendiz, sua metamorfose iminente.

A água não poderia se amoldar a nada se não existisse aquilo que a amolda. Mas filosofar exige agir, e Kim Ki-Duk precisa falar do tema mais sensível na realidade surcoreana: o confronto com a Coreia do Norte após a guerra civil que marcou ambas as sociedades. Fez isso em “Geumul” (2016), ou “A Rede”, uma reflexão sobre a inumanidade inerente a todo tipo de radicalismo político/ ideológico.

Moebius, 2013 / Foto: Divulgação

Finalmente, sem ter feito uma referência a todos os filmes do diretor (são 18 filmes dirigidos), temos “Moebius” (2013). Censurado durante seis meses na Coreia e em vários países de todo o mundo, trata de uma tragédia familiar na qual acontecem castração, incesto, infidelidade, ciúmes, sadismo atroz, loucura.

Mais uma vez uma linguagem do não diálogo que permite a perfeição enquanto narrativa do simbólico. Um filme que funciona como uma profunda análise do psíquico humano, dos limites que somos capazes de percorrer com a mente, até aonde a alma vira monstruosidade ou ate aonde o amor é capaz de se manifestar no meio do furacão. Os monstros, não parecem ser entidades aberrantes esperando nas costas do nosso consciente psicológico. Parece que, assim como um furacão letal se forma a partir de determinados fatores atmosféricos, os monstros que podemos ser se formam numa interação específica, íntima, em determinado momento e ponto de um existir.

Em Kim Ki-Duk existe uma constante procura de beleza, justapondo minuciosos trabalhos fotográficos à violência humana que ocorre dentro dos filmes. Se a violência e a crueldade produzem beleza, então a beleza é cruel e violenta. Talvez essa seja uma conclusão pouco admissível, mas assim também é pouco admissível o cinema do surcoreano.

Sua rebeldia dentro plano artístico e social fazem dele um ícone do cinema autoral dessas primeiras décadas do século XXI. De todos os diretores dessa geração, é o único a quem Hollywood tem fechado as portas definitivamente. Fecha as portas porque a poesia e a tragédia humana, quando verdadeiras, não podem ser industrializadas. Acabam sendo monstruosidades que dificilmente entrem na lógica do prazer do consumo, ou consumo do prazer.