Artivismo como repertório de ação
Muito se fala na contemporaneidade sobre o ativismo e a militância pelas causas identitárias. Dentro do campo das artes, cunha-se o termo artivismo para toda iniciativa que esteja no espaço limítrofe entre a sensibilização estética e a defesa de ideologias pautadas pelo viés político. De acordo com Jacques Ranciére, em seu livro “A Partilha do Sensível” (2000), a função estética no século XXI pretende ser a configuração sensorial das múltiplas experiências ao qual esse novo sujeito – constantemente estimulado – adentrará em escalas diárias.
Há, nesse novo século, novos modos de sentir. Novos modos de subjetividade política, compreendendo-se uma fusão sem precedentes da arte com a vida consumidora. Para Ranciére, nesse momento a arte pode ser um testemunho do encontro com o irrepresentável que tem como objetivo desconcertar todo o pensamento.
Sabendo-se que a projeção das sensações estéticas é dada mais pelo lado imaginativo do que racional, sentimos esteticamente no presente por duas razões principais: primeiramente, pelo prazer inerentemente humano da contemplação; mas também pela necessidade de consumo de produtos culturais norteadores.
Construímos alter egos a partir das possibilidades de transmutação identitária que os produtos do supermercado cultural nos possibilitam. Claro que falo de populações acima da linha da precariedade, consumidores ávidos que temem o esvaziamento de suas vidas quando não abarrotadas pelos estímulos do consumo. Feito em doses diárias, a droga-consumo afeta e molda quem somos, quem achamos que somos, quem podemos ser e quem queremos ser.
Há, portanto, que se desassociar dois tipos diferentes de contato artístico: aquele que provém do capitalismo artista (como afirma Gilles Lipovetsky em seu livro “A estetização do mundo” de 2015) e efetua um contato sensorial que prevê o lucro através dos estímulos discursivos; e o contato com a arte como ferramenta discursiva e política. É esse segundo contato que abordarei no restante deste texto.
Agindo incessante e diretamente sobre a cultura e as formas de contracultura, a arte pode nos apresentar um contato direto com as múltiplas culturas vigentes e nos conduzir por repertórios de representações. Quando utilizada de forma visceral e indomável, pode ser palco de contestações sobre corpos marginalizados, arbitrariedades do Estado, poderes normalizantes da cultura, entre tantas outras reinvindicações que os corpos precários começam a exigir nesse início de século.
Nesse sentido, a arte pode ser instrumento de luta porque a sensibilidade é o campo primordial das lutas. O artivismo pode, nesse momento, ser ferramenta do repertório de ação dos grupos que exigem atenção e equalização de um poder estatal disforme e relapso. Essa experiência de luta, no pensamento do sociólogo norte-americano Charles Tilly, apresenta-se num campo de conflito onde novas práticas de discurso são possíveis.
Lembro-me da frase de Foucault: as ações, no campo social, são escolhas dependentes de um campo de alternativas possíveis. É necessário que se haja repertórios de fala para as lutas identitárias, que sejam estabelecidas múltiplas plataformas de educação, contrapersuasão e combate. E a arte pode (não necessariamente deve, mas sempre pode) ser um espaço livre para a problematização e visibilidade dessas populações em luta.
Tilly, ao abordar o conceito de repertório de ação, ainda afirma:
1. As lutas e embates no campo social se dão através de estratégias articuladas, mas também através de improvisos que surgem no momento dos conflitos;
2. Com o tempo, práticas ativistas (e também artivistas) são transmitidas para outros movimentos políticos similares e, portanto, transformam-se em repertório cultural, modos de ação e formas de conduzir discursos;
3. A capacidade de criatividade e inovação (presente como matéria-prima da arte) é o elemento que coloca os diversos repertórios de ação em movimento;
4. No caso do ativismo político, ele perde sua potência se não for capaz de desenvolver formas inovadoras de manter a tensão política estável;
5. A estabilidade política só é possível quando todas as vozes de oposição se calaram, ou seja, quando o espaço social está morto. A cidade é um campo primordial de conflitos e, em vez de pensarmos na erradicação do conflito, poderíamos pensar em maneiras de lidar com essa característica inerente dos processos de socialização;
6. A produção artística confere ao repertório do ativismo uma gama de estratégias, de expressão de símbolos e comunicação de ideias, permitindo modalidades sensíveis de intervenção política, além de opções pacíficas de retaliação e resistência.
Portanto, pela visão do autor, o artivismo pressupõe a recuperação de um espaço de fala através do espírito de resistência, tornando a estética artística uma criação política e discursiva.
Entendendo por autoritário todo comportamento que impõe definições excludentes de um “eu” e de um “outro”, que negue formas de subjetivação e dificulte ou impossibilite a manifestação de discursos contrários aos preceitos normalizantes vigentes, pode-se afirmar que a arte pode ser um campo de lutas contra essa autoridade única da identidade.
Entendendo em Foucault que a normalização (o processo de estabelecimento de padrões únicos de conduta, formas preestabelecidas de vida e cerceamento da diferença) é parte do repertório de ação dos grupos conservadores – cujo medo reside na perda de poderes extremos e autoritários, percebe-se que o artivismo estabelecido como contrarrepertório pode ser o local incendiário onde novas ideias igualitárias queimem as tradições impositivas e estreitamente sufocantes no que tange a compreensão das identidades.
Para sermos múltiplos e complexos, o artivismo pode ser um campo de empoderamentos estéticos e sensíveis que conduz à retradução de afetos mais democráticos.