A dignidade da política
A palavra “Política” deriva do grego pólis (cidade) e se refere, genericamente, à atividade do cidadão no cuidado com o que é do interesse público, do interesse da cidade. Para Aristóteles, o homem é, essencialmente, um “animal político”, porque esse caráter público da sua atividade, em interação com os demais cidadãos, é o que o tira da vida puramente biológica e das obrigações típicas da vida privada. Na pólis grega, a política era considerada a atividade fundamental do homem livre, na qual ele realmente se mostrava “humano”.
Àqueles que não podiam desfrutar de tal privilégio, como as mulheres, os escravos e os estrangeiros, cabia uma vida de segundo nível, como quem não possui a humanidade em toda a sua pujança.
A filósofa alemã Hannah Arendt, talvez a mais importante intérprete da política, da história e da condição humana, parte dessa realidade histórica para resgatar o sentido da política, que ela considera a forma mais acabada de exercício da liberdade. Sua reflexão sobre a política nasceu da sua história de vida. Judia e perseguida pelo nazismo, foi para o Estados Unidos na década de 1930, tendo se tornado cidadã norteamericana. É a partir da experiência trágica dos regimes totalitários do século XX (nazismo, fascismo, socialismo) que ela vai buscar as raízes da política, tentando entender por que ela se tornou sinônimo de violência. O título do presente artigo é emprestado de um livro seu, que condensa alguns de seus artigos.
Embora em algumas regiões do mundo a violência e o totalitarismo ainda sejam a marca dominante da política, no nosso caso parece que ela está cada vez mais carregada de um sentido de corrupção, bandalheira. Se nos regimes totalitários as pessoas estão longe da política por absoluta falta de liberdade, nós nos afastamos dela por não querermos nos misturar com essa “gentalha”. O problema é que, ao fazermos isso, contribuímos vivamente para a degradação do sentido da política, pois nos refugiamos na vida privada e deixamos a vida pública – lugar do exercício da liberdade – justamente para os que julgamos inaptos para fazê-lo. Se o totalitarismo se deve ao medo, a corrupção se deve, em grande parte, à indiferença.
Em ambos os casos, corrói-se o sentido da política como espaço do exercício da liberdade, no qual o ser humano se mostra e age enquanto tal. O afastamento dos indivíduos da política, isto é, dos assuntos de interesse público, deixa um vácuo, que vai sendo ocupado por ditadores violentos ou por redes de corrupção, ou ainda pelas duas coisas. Outro filósofo alemão radicado nos Estados Unidos, Erich Fromm, descreveu bem esse fenômeno ao afirmar que temos medo da liberdade, que para nós é preferível ter quem tome as decisões e nos diga o que fazer, e foi esse tipo de sentimento que permitiu, por exemplo, a ascensão de Hitler ao poder.
Esse distanciamento esvazia o sentido das ideias de liberdade e igualdade, preconizadas pelas revoluções liberais, e cujos princípios estão presentes no nosso ordenamento jurídico. Ao nos distanciarmos da política, distanciamo-nos também da nossa própria essência.
Quanto mais nós, cidadãos comuns, fizermos da política apenas motivo para reclamações genéricas, mais as aves de rapina irão tomando o espaço que deixamos, corroendo a democracia e fazendo da vida pública seu balcão de negócios. Se abdicamos da nossa capacidade de pensar, de se indignar, caímos no que Arendt chama de “servidão voluntária”. A ação política, enquanto engajamento livre nas coisas de interesse comum, pode e deve começar na participação em atividades comunitárias, nas associações de classe e de bairros, no voluntariado, nos partidos políticos. Nenhum herói será eleito para recuperar a dignidade da política. Essa é uma tarefa que cabe a todos nós.