Marcas para toda a vida: vítimas de violência, crianças crescem com reflexos dos abusos na saúde física e mental
Em quase 90% dos casos de violência sexual infantil o agressor é próximo da vítima, o que agrava ainda mais o trauma
Em quase 90% dos casos de violência sexual infantil o agressor é próximo da vítima, o que agrava ainda mais o trauma
“Tudo aconteceu dentro da casinha, enquanto ele me dava o celular para assistir desenho”. “Ele passava a mão no meu corpo enquanto a gente brincava de estátua”. “Ele fazia tudo enquanto a gente brincava. Daí ele me dava doce escondido”.
Esses são alguns relatos de crianças entre 4 e 8 anos, vítimas de violência sexual. Um crime grave e, por muitas vezes, silencioso, que deixa marcas profundas durante toda a vida. Muitas vezes, inclusive, a criança sofre calada e cresce sem dividir este fardo tão pesado com ninguém.
Meu silêncio durou 19 anos. Durante esse tempo, vivi com medo, insegurança, traumas, lembranças, depressão, tristeza, isolamento. Apesar de passado muito tempo, as marcas eram presentes como se fosse recente
Foi assim que Maria [nome fictício] cresceu. Rodeada de traumas e medos. Ela tinha apenas oito anos quando os abusos começaram. A família era de classe social baixa e, muitas vezes, tinha somente o necessário na mesa para se alimentar. O abusador se aproveitava desta situação e oferecia para Maria dinheiro para comprar bolachas, salgadinhos e outras guloseimas. “Na ingenuidade de criança, eu era atraída e achava isso normal. Ele me molestou e abusou sexualmente por quase três anos”, conta.
O abusador ameaçava Maria: se ela contasse para alguém o que ele fazia, ela iria morrer. “Meu silêncio durou 19 anos. Durante esse tempo, vivi com medo, insegurança, traumas, lembranças, depressão, tristeza, isolamento. Apesar de passado muito tempo, as marcas eram presentes como se fosse recente”.
Depois de tanto sofrer sozinha, Maria criou coragem e decidiu buscar ajuda. “Abri meu coração para uma mulher próxima a mim. Falei o que eu estava passando e ela não mediu esforços para me ajudar”.
Foi por intermédio dela, que Maria conheceu o trabalho do Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Savs). Buscar ajuda foi o primeiro passo para se libertar de um trauma tão pesado e solitário. “Fui acolhida e iniciei meu acompanhamento com a equipe deste serviço. Tenho muita gratidão por todo o acolhimento, aconselhamento e atenção que recebi e recebo até hoje. Espero que muitas pessoas possam ser ajudadas como eu fui e possam ter uma vida leve e feliz, mesmo depois de tanto sofrimento”.
A edição de 2020 do Anuário Brasileiro da Segurança Pública mostra que no primeiro semestre do ano passado, foram registrados 17.287 casos de estupro de vulnerável no Brasil. Destes, 799 foram em Santa Catarina. Em Brusque, a Delegacia de Proteção à Criança, ao Adolescente, à Mulher e ao Idoso (Dpcami) abriu 26 inquéritos relacionados à estupro de vulnerável em 2020. Destes, 20 já foram finalizados.
Porém, nem sempre essa violência chega ao conhecimento da polícia. Por isso, o delegado da Dpcami de Brusque, Matusalém Júnior de Morais Machado, afirma que não significa que a cidade teve somente estes 26 casos ao longo do ano. “Muitas vítimas não fazem o registro, por vários motivos”, explica.
Em 2021, segundo o delegado, já foram 13 inquéritos abertos para investigar este tipo de crime em Brusque, sendo que cinco já foram concluídos. A prisão mais recente aconteceu no dia 25 de março. Trata-se de um homem de 29 anos, suspeito da prática de estupro de vulnerável contra duas crianças, de 7 e 4 anos. Ele era vizinho das vítimas.
A proximidade com as vítimas, inclusive, é uma das principais características desse crime. Não só a nível nacional, mas em todo o mundo.
A promotora da 4ª Promotoria de Justiça de Brusque, Susana Perin Carnaúba, observa que os casos mais comuns de violência sexual são com crianças menores de 12 anos, sendo que a incidência das ocorrências é cinco vezes maior com as meninas.
De acordo com ela, em torno de 90% dos casos são pessoas muito próximas das vítimas, que tem contato quase que diário e que, em tese, não oferecem a menor suspeita. “Não raras vezes as mães apoiam os maridos e companheiros em detrimento das vítimas. Talvez porque não querem acreditar que isso possa ter acontecido em suas famílias, ou porque dependem financeiramente e economicamente do agressor”, afirma.
“A negação da mãe sobre o abuso é muito mais sentida pelas crianças do que o próprio abuso em si. Penso que algumas mães não nasceram para serem mães”, completa.
De acordo com o Conselho Tutelar de Brusque, neste ano, o órgão já atendeu a 12 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. No ano passado, foram 41 ocorrências atendidas e, em 2019, 33. Um aumento de 24% entre 2019 e 2020.
A única constante que se percebe é a proximidade do autor com sua vítima. Pode ser pai, padrasto, tio, avô, até mesmo um vizinho
Já os casos atendidos nos primeiros meses deste ano, representam 29% das ocorrências registradas em todo ano passado.
Para os conselheiros tutelares de Brusque, as mudanças trazidas pela pandemia, de cunho educacional, econômico e social, vem agravando os casos de violência sexual, como também de outros tipos de violência sofrida por crianças e adolescentes na cidade.
“Com as dificuldades vividas, muitas famílias não conseguem lidar com tal situação e acabam descontando seus desafetos, momentos de ira ou frustração em seus filhos, destruindo sua autoestima e causando danos muitas vezes irreversíveis para seu desenvolvimento pleno. Cada violência sofrida por nossas crianças e adolescentes, serão feridas que marcarão, de forma negativa, sua infância ou adolescência”, avaliam os conselheiros, por meio de nota.
A psicóloga policial Aline Pozzolo Batista observa que a pandemia traz uma vulnerabilidade maior para as crianças, pois muitas vezes, elas acabam ficando isoladas com os autores das agressões, ou seja, pessoas próximas.
Além disso, ela destaca o papel das escolas nas revelações de abusos. No ano passado, com as escolas fechadas por quase dez meses, a Dpcami não teve nenhum caso em que a violência sexual foi revelada com a ajuda do educandário.
“Sempre tivemos escolas envolvidas em casos de denúncia e este ano não me recordo de ter escola envolvida em algum caso e no ano passado também não. A escola é um ambiente onde sempre há revelações de abuso e as crianças estão tendo menos acesso, e estão mais vulneráveis porque estão em contato frequente com os abusadores”.
A promotora Susana Perin Carnaúba destaca que houve um aumento no número de casos de violências e abusos sexuais que chegaram até o conhecimento do judiciário no último ano. Ela pondera, no entanto, que esses casos não tiveram início durante a pandemia.
“Não acredito que estes abusos aconteceram por conta da pandemia, eles sempre existiram, só não eram comunicados. Talvez por várias razões, por vergonha – visto que a maioria dos abusadores são muito próximos, – às vezes por terem unicamente só uma suspeita”, diz.
“Com a pandemia, com as pessoas mais dentro de suas casas, por certo a possibilidade de os agressores serem mais observados e informado do crime na delegacia de polícia é muito maior, dando a entender que os abusos só se iniciaram por conta da pandemia, o que não é verdade. A pandemia não aumentou os casos, e sim, acabou por aflorar as situações que já existiam”, completa.
O delegado Matusalém explica que a investigação de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes tem suas peculiaridades. Desde 2017, vítimas de violência sexual menores de idade não podem prestar depoimento na delegacia. No caso de crianças, a investigação é feita a partir da avaliação psicológica.
Para as vítimas adolescentes, é feito um procedimento chamado depoimento especial, que é quando ela presta depoimento no Fórum, acompanhada de uma psicóloga judicial. Este ato é acompanhado de forma simultânea – não no mesmo ambiente – pelo juiz, promotor e advogado do suspeito. “Neste ambiente, a vítima pode contar o que aconteceu para a psicóloga e o promotor ou o advogado podem fazer perguntas. Depois desse procedimento, a investigação retorna para a polícia concluir”.
Neste tipo de crime, não há dificuldade em se chegar ao suspeito, pois na maioria das vezes é alguém conhecido da vítima. Entretanto, a fase mais complexa da investigação é juntar indícios que comprovem a autoria do crime.
Na maior parte dos casos, não há indícios físicos da violência, pois não envolve contato invasivo.
“O exame de conjunção carnal só identifica se aquela vítima teve uma ruptura himenal ou não, ou seja, se continua virgem ou não. Ou se teve alguma lesão. A maioria dos casos não tem nenhum sinal e as pessoas interpretam equivocadamente que o exame é que vai dizer se aconteceu o abuso”, afirma Aline.
De acordo com a psicóloga policial, a maior parte dos abusos não envolvem lesões aparentes. Também não há testemunhas. “Para construir, materializar isso, é bastante complicado. Sustentar a acusação é um trabalho delicado porque ele depende muito da fala da vítima que muitas vezes é uma criança de 3, 4, 5 anos”.
A lei define como estupro de vulnerável não apenas a conjunção carnal, mas também atos libidinosos como passar a mão ou o órgão genital em menores de 14 anos. “Isso também é estupro, mas não deixa marca, daí a dificuldade de construir a materialidade. Por isso, a avaliação psicológica é tão importante”, destaca o delegado.
A psicóloga Aline afirma que a educação sexual feita desde cedo, com o objetivo de prevenir os abusos, é uma arma fundamental dos pais ou responsáveis pela criança.
“Muitos pais falam que começaram a pensar em fazer a educação sexual para prevenção de abusos apenas quando a criança tivesse 10, 11, 12 anos, mas a gente sabe que a maior parte dos abusos são cometidos antes dessa idade”.
Aline destaca que a educação sexual para prevenção de abusos começa desde o nascimento da criança. “Quando a gente está trocando a fralda, tocando aquele corpo com respeito, já está ensinando alguma coisa sobre o corpo e a sexualidade para aquela criança”.
De uma forma mais sistemática, a psicóloga policial orienta que essa educação sexual pode começar por volta dos 3 anos, quando os pais ensinam, por exemplo, o que são partes íntimas e começam a inserir os conceitos de privacidade.
“Quando se nomeia e fala para criança que essas partes têm que ficar guardadas por uma roupa que é íntima e que por ser íntima, não pode ser mostrada para qualquer um, já é uma educação sexual preventiva”, diz.
Deixar para falar sobre isso [educação sexual] quando a criança já está entrando na adolescência não vai ser muito eficaz
“Deve-se começar a educação muito cedo, mas de acordo com a faixa etária e o nível de conhecimento daquela criança. Deixar para falar sobre isso quando a criança já está entrando na adolescência não vai ser muito eficaz”, completa.
O delegado Matusalém recorda de um caso de duas primas em que o abusador era o avô. No início, parecia que as duas eram vítimas, mas depois descobriu-se que uma delas não tinha sido abusada. “A que não foi abusada, a mãe dela já tinha feito essa orientação, e isso foi possivelmente o que evitou que ela fosse vítima do avô”.
Aline destaca ainda a importância das instituições, como a escola, por exemplo, se envolverem nesta questão, já que muitas vezes, na família em que já acontecem abusos, não será trabalhada a educação sexual preventiva com a criança.
“Sabemos que é uma discussão difícil, mas os serviços de saúde e de educação precisam se questionar do que pode ser feito para proteger essas crianças, porque nem sempre deixar a cargo da família será o suficiente para protegê-las”.
De acordo com a psicóloga, existem três pilares que podem ajudar na prevenção dos abusos: reconhecer, reagir e relatar. “Se a criança consegue identificar que é um abuso, consegue sair dessa situação de risco e contar o abuso, a gente fechou um ciclo que pode protegê-la”.
Não existem sintomas específicos que demonstrem que a criança sofreu ou está sofrendo violência sexual. A psicóloga Aline afirma que a criança pode começar a demonstrar que tem algo errado, mas não há nenhum comportamento que possa fazer uma conexão direta com o abuso.
De acordo com ela, a criança pode mostrar agressividade, isolamento, depressão, choro fácil, mas outros estressores também podem desencadear esses mesmos sintomas, ou seja, nem sempre significa que a criança sofreu algum tipo de violência sexual.
A orientação é que os pais estejam sempre abertos ao diálogo com a criança. Assim, ela se sente à vontade para esclarecer suas dúvidas e relatar alguma situação que aconteceu. “É importante que os pais estejam disponíveis, perguntando para a criança como foi o dia, se teve algo que não gostou, como ela está se sentindo. Isso será muito mais protetivo do que investigar sintomas”.
A psicóloga alerta que se a criança apresenta algum tipo de sintoma ou mudança de comportamento é porque o abuso já aconteceu. O objetivo é evitar que isso ocorra.
Para que a criança tenha espaço para reclamar de uma situação, ela tem que sentir abertura dos pais e isso só se dá quando se estabelece uma relação de diálogo, de conexão com a criança
“Para que a criança tenha espaço para reclamar de uma situação, ela tem que sentir abertura dos pais e isso só se dá quando se estabelece uma relação de diálogo, de conexão com a criança. Percebeu que alguma coisa está errada com a criança? Pergunta o que está acontecendo. Essa é a melhor maneira de descobrir se é uma violência sexual ou pode ser alguma outra situação”.
A psicóloga destaca que quanto mais próxima a vítima era do abusador, mais danos essa violência deixa. Além disso, a frequência do abuso e a forma com que a violência foi empregada e as características individuais da criança são determinantes para um maior ou menor trauma.
“É um crime grave, que gera um potencial de dano enorme no desenvolvimento da criança e, por isso, merece muita atenção. Pode gerar transtornos não só na infância, mas na vida adulta também”.
A pena para o crime de estupro de vulnerável é de no mínimo oito e no máximo 15 anos, mas de acordo com o delegado Matusalém, a Justiça sempre leva em consideração o número de vezes que essa agressão aconteceu. “Ano passado tivemos condenações de 40, 60 anos de prisão. Se abusou uma vez, a pena pode ser de 8 a 15 anos, se foram duas, já dobra, e assim por diante”.
Desde outubro de 2019, Brusque conta com um serviço específico para atender vítimas de violência sexual. O Serviço de Atenção Integral às Pessoas em Situação de Violência Sexual (Savs) funciona junto à Clínica da Mulher, no segundo andar da Policlínica, de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h. Após às 17 horas e aos fins de semana, o local de referência para o atendimento de violência sexual no município é o Hospital Azambuja.
O Savs foi criado para oferecer atendimento ambulatorial às pessoas em situação de violência sexual. A enfermeira e coordenadora da Clínica da Mulher e do Savs, Thaisi da Cunha, explica que a finalidade é o acompanhamento em saúde dessas vítimas e não a investigação, que fica a cargo da polícia.
“Temos uma equipe multidisciplinar, formada por médico, enfermagem, assistente social e psicóloga para atender as pessoas que estão sofrendo algum tipo de abuso ou que já sofreram”.
Ela ressalta que os pacientes chegam ao Savs de forma direta ou encaminhados por outros setores como Conselho Tutelar, Dpcami, hospital, Instituto Geral de Perícias (IGP), Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Cras) e Centro de Referência de Assistência Social (Creas).
De outubro de 2019 até março deste ano, o Savs já atendeu em torno de 150 famílias, incluindo adultos, crianças e adolescentes. Em acompanhamento recente, estão 58 pacientes, sendo 21 crianças (até 11 anos), 24 adolescentes e 13 adultos.
O secretário de Saúde de Brusque, Osvaldo Quirino de Souza, explica que no Savs, as vítimas recebem o apoio multiprofissional e, nos casos agudos, que são os que aconteceram recentemente, é importante que se procure o atendimento, se possível, em até 72 horas após a violência, para receber o tratamento profilático para evitar as Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e a contracepção de emergência, quando é o caso.
Acredito que a criação do Savs é um divisor de águas para nossa cidade
A coordenadora do Savs, entretanto, explica que nem todos os pacientes em acompanhamento sofreram abusos recentes. Muitos acabam procurando o serviço após anos do trauma.
“Percebemos que temos um aumento gradual nos atendimentos. Atendemos muitas pessoas que há anos sofreram abusos, mas não se sentiam seguras em procurar ajuda para não se expor. As pessoas estão tendo mais coragem de denunciar e procurar ajuda. Acredito que a criação do Savs é um divisor de águas para nossa cidade”.
O perfil das vítimas, de acordo com Thaisi, é bem variado. Dos que estão em acompanhamento atualmente no espaço, 77% são crianças e adolescentes. “A maioria são meninas, de todas as faixas etárias e todas as classes sociais. Muitas vezes se tem a ideia de que a violência sexual acontece apenas em classes mais baixas, mas não é assim. Temos pacientes de todos os níveis sociais”.
Ao chegar ao Savs, o primeiro passo é criar um vínculo com a vítima – principalmente quando é criança ou adolescente – para que ela se sinta segura e à vontade para falar, se quiser. “Não forçamos nada, até porque não somos investigativos. Nosso papel é dar apoio em saúde. Após esse primeiro contato, fazemos o encaminhamento para as consultas com cada profissional. Cada profissional tem um papel importante nesse processo”, destaca.
A psicóloga policial Aline Pozzolo Batista participa de um projeto voltado à prevenção da violência sexual contra criança, promovido pela Polícia Civil de Santa Catarina.
Intitulado ‘Proteja uma Criança’, o projeto fornece ferramentas para educação sexual voltada à prevenção de abusos.
Com a pandemia da Covid-19, o projeto se fortaleceu de forma on-line, pelo Instagram (@protejaumacrianca). Na rede social, Aline e Cristina Weber, psicóloga policial de Joinville, repassam informações sobre este crime e orientações sobre como prevenir.
No perfil, é possível encontrar jogos desenvolvidos especialmente para ensinar as crianças e adolescentes sobre o assunto. A ideia é que quando terminar a pandemia, o projeto realize oficinas presenciais visando a prevenção do abuso sexual nas escolas.