Como a maioria das grandes cidades, São Paulo é rica culturalmente e nos permite ter experiências mais incomuns, algumas positivas e outras negativas. É também inevitável não observar o ritmo frenético de alguns moradores, assim como seus estilos de vida. No entanto, recentemente estive lá e percebi comportamentos que me chamaram atenção de forma extremamente positiva, algo dificilmente visto em lugares públicos de cidades menores, como em nossa Santa e Bela Catarina. Comportamentos genuínos, naturais, não marginalizados e nem repudiados pelas pessoas que estavam em volta, pelo menos de acordo com meu atento olhar.
Eram casais de pessoas do mesmo sexo andando livremente de mãos dadas, demonstrando afeto, carinho em público. Eram lugares que não se restringiam à população LGBTI, como muito comumente acontece em bares e boates específicos para esse público, onde se sente livre e à vontade para demonstrar afetos. Quando falo em demonstração de afeto, não me refiro a fazer sexo em público, mas sim o que casais de sexo oposto fazem com frequência nesses lugares – sem jamais serem cerceados.
As diferenças devem ser preservadas na unidade e a unidade é fundamental, apesar das diferenças. Mas, infelizmente, num universo onde 72 países consideram a homossexualidade um crime e 9 preveem a pena de morte, num país que a cada 19 horas um gay é assassinato pelo simples fato de ser gay e que figuras públicas representativas são homofóbicas, racistas e demonstram diversos tipos de preconceitos e intolerâncias, entendo que seja difícil mudar uma pesada carga cultural do dia para noite.
Ainda ativa no mundo atual, essa carga cultural é observada há séculos ou milênios. Eduardo Galeano discorre sobre esses “anjos do mal” em um ensaio em 2005 chamado “Os demônios do Demônio”. Os diversos semblantes do Príncipe das Trevas são representados por muçulmanos, judeus, mulheres, homossexuais, índios, negros, estrangeiros e pobres. O escritor afirma:
O Demônio é homossexual
Em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo.
Desde 1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do inferno, que surgiam do fogo.
Na América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros. Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães, acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a naturalidade.
Nem na Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo. Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinqüenta mil? Nunca se soube. Ninguém os contou, quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos foram os ciganos exterminados.
No dia 18 de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum vivo, puderam reclamar uma indenização.
Por mais que ainda vivamos numa nação em que há liberdade de expressão e não condene a homossexualidade no âmbito legal, ainda há uma postura omissiva da sociedade e de seus legisladores diante da discriminação por orientação sexual, identidade sexual e identidade de gênero.
Consequentemente, a questão cultural de exclusão ainda é muito forte em situações triviais do cotidiano. Desde presunções que podem vir a incomodar ou constranger até escárnios que podem provocar a degradação moral de um indivíduo. Exemplos prosaicos de presunções podem ser vistos com um gerente de banco que olha para o indivíduo do sexo masculino e ingenuamente (ou não), diz: então, se você perder esse cartão e a sua esposa tiver um adicional, você deve tomar determinada atitude. Ou ainda colocar um casal gay em camas separadas num quarto de hotel sem questioná-los, ou tantos outros exemplos culturais e linguísticos de um país que se construiu – apesar da realidade pregar o contrário – branco, hétero e classicista.
Dessa forma, há uma carga cultural que presume um único modelo de família tradicional.
Recentemente estava lecionando inglês para um grupo pequeno de alunos. Em determinado momento, um dos meninos adolescentes fala na sala que todos o detestavam no colégio, ao que a colega de classe questiona o motivo e ele afirma: porque sou gay. A conversa continuou em inglês e a colega fez algumas perguntas, dentre as quais se ele era agredido. Ele disse que não fisicamente, mas no início era frequentemente agredido verbalmente.
Em sala de aula há 13 anos, percebo que a educação é um processo lento, cansativo e que às vezes atinge um número pequeno da população, enquanto uma grande parte dela se limita em discursos rasos, resumindo os debates sobre liberdade de vida e respeito à diversidade em três sílabas: mi-mi-mi.
Assim sendo, necessitam de um líder numa posição defronte do combate como pretexto para salvá-los do “mal” que determinados grupos podem causá-los. Leis são implantadas, bocas amordaçadas, vítimas acorrentadas. Acreditam em um líder porque se sentem confortáveis no papel de submissos, procuram um salvador porque se encolhem no papel de vítimas. Ao desistirem de salvarem-se a si mesmos através do conhecimento, da educação e de um olhar complexo ao próximo (ao mundo), depositam esse fardo a qualquer um que grite mais alto.
Quando o aluno, em sala, contou-me o relato, questionei se a família sabia da orientação sexual dele e das agressões às quais era vítima. Ele disse que só a mãe sabia de tudo. Como educador, orientei as providências que ele deveria tomar no caso de agressões e conversei sobre o assunto em sala, entrei no tema preconceito e, por fim, ele disse que não era mais agredido, mas que muitos o evitavam e falavam dele pelas costas.
Ao fim da aula, fiquei pensando naquele menino e nas várias outras crianças e adolescentes que vivenciam experiências semelhantes, dos traumas que carregam desde a tenra infância que muitas vezes acabam se tornando irreversíveis.
São vidas desprezadas, jogadas às traças, inferiorizadas, estigmatizadas. Pequenos e indefesos humanos sem ferramentas e nem “armas” para lidarem com tamanho constrangimento e humilhação, muitas vezes sem coragem de abrir-se com a família por medo de rejeição, desprezo ou do desconhecido e inesperado.
Diante disso, cabe a nós – educadores – assim como à sociedade de forma geral, estarmos atentos para quaisquer tipos de discriminação, não nos omitirmos, a fim de prevalecer o respeito, combater discursos de ódios, questionar pensamentos infundados, irracionais, provindos da ignorância.
Tais atitudes serão favoráveis para que consigamos viver num universo menos doente e mais acolhedor. E, dessa forma, futuras gerações terão mais recursos para alcançar a unidade na diferença e preservar a diferença na unidade.