Em 2018, o Papa Francisco quebra um dos paradigmas máximos da igreja ao atestar contra o conservadorismo religioso em relação às orientações sexuais. Pronunciou que lhe agrada que se fale de “pessoas homossexuais”, sendo que primeiro há a pessoa, na sua inteireza e dignidade.

A pessoa, segundo ele, não é definida somente por sua orientação sexual. “Não nos esqueçamos”, continua o Pontífice, “de que somos todos criaturas amadas por Deus e destinatárias do Seu infinito amor”. Reitera que toda pessoa, independentemente da própria orientação sexual, “deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, tomando-se o cuidado de evitar qualquer rótulo de discriminação injusta e, particularmente, qualquer forma de agressão e violência”.

Herculine Barbin foi uma pessoa interssexual francesa cujo caso é muito conhecido principalmente depois que Michel Foucault estudou o seu caso e publicou seu diário / Foto: Divulgação

O Papa, ao afirmar que a Igreja não pode condenar, explica que:

A religião tem direito de exprimir a própria opinião a serviço das pessoas, mas Deus, na criação, nos fez livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Na vida, Deus acompanha as pessoas, e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É necessário acompanhar com misericórdia.

(in: Quem Sou Eu Para Julgar?)

O Papa Francisco, ao confortar Juan Carlos Cruz, homossexual vítima de abusos pelo padre chileno Fernando Karadima (condenado pelo Vaticano pela prática do crime de abusos sexuais na década de 1980), afirmou: “O fato de ser gay não interessa. Deus te fez assim, te ama assim e eu não quero saber. O Papa te ama assim. Tem de ser feliz como é”.

Tudo isso é novo para o religioso-conservador, para o filósofo-conservador ou para o só-conservador. Desacomoda, irrita. Mas o Papa está possibilitando um novo olhar às pessoas. Diferentes somos todos quando nos comparamos ao outro. Esse Papa, sim, é pop.

A nossa cultura ocidental, conforme observa Andrew Solomon no livro “Longe da Árvore: pais e filhos em busca da identidade” (2013), aprecia a dualidade. Eis que a vida parece menos assustadora quando se pode separar o bem do mal em pilhas distintas, quando se pode separar a mente do corpo, quando os homens são masculinos e as mulheres são femininas.

As ameaças ao gênero, segundo o autor, são ameaças à ordem social. Se as regras não são respeitadas, tudo parece permitido, e Joana d’Arc deve ir para a fogueira. O próprio termo “transgênero”, conforme Solomon:

[…] é abrangente e se aplica a qualquer pessoa cujo comportamento se distância de maneira significativa das regras aceitas para o gênero indicado pela anatomia dessa pessoa ao nascer. […] e sua abreviatura trans são os mais amplamente aceitos pela comunidade trans. Um homem trans nasceu mulher e se tornou homem; uma mulher trans nasceu homem e se tornou mulher.

Recentemente ouviu-se na universidade na qual leciono o relato de uma mulher trans, convidada pela professora Ana Selma Moreira, do Curso de Direito. Chirley, que foi rejeitada pelos familiares quando ainda criança e na adolescência passou a viver em situação de rua, sem ninguém, sozinha, sem apoio, tornou-se invisível.

Drogou-se, prostitui-se. Mas alguém lhe estendeu a mão. Arrumou emprego, conseguiu moradia, passou a ajudar sua mãe. Certa noite, já mulher, quando voltava do trabalho para casa, ouviu um grito “corre”. Não correu, continuou a caminhar porque não devia nada a ninguém, não respondia a crime algum. Porém, a pretensa inocência não importava para a sangrenta e invisível mão dos conservadores, preconceituosos e extremistas, que lhe atacaram (e ainda atacam) com um golpe na cabeça.

Foi empalada, enrolada num colchão e jogada num formigueiro de um terreno baldio. Foi socorrida e resgatada após seis horas de agonia.

O balanço do terror? Teve traumatismo craniano, foi empalada com um pedaço de bambu, que lhe rompeu o baço e todo o intestino grosso. Ficou seis meses em coma. Recebeu alta e quando voltava para casa de ambulância, numa lombada, aconteceu novo rompimento dos intestinos, mais três meses de coma. Realizado o transplante, sobreviveu.

Como está hoje? Trabalha, é respeitada pelos familiares com os quais tem boa e harmoniosa convivência. Porém, os preconceitos (até mesmo via WhatsApp) continuam. Ela segue seu caminho, como todos os seres humanos que se igualam pela luta e pela dor.

Em 2015, em um caso amplamente coberto pela mídia, a atriz, modelo, socialite e ex-atleta Caitlyn Jenner confirmou que estava em processo de transição de gênero, já que se identificava como uma mulher / Foto: Divulgação

A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante a todos os seres humanos a liberdade e a igualdade em dignidade e direitos, sendo que a razão e consciência, próprias dos seres HUMANOS, determinam que o agir de cada HUMANO seja pautado no espírito da fraternidade.

Apesar de tudo, Chirley continua sendo ora feliz, ora triste, ora solitária, ora realizada, pois se encontrou e encontrou também uma comunidade que a abraça. Seu gênero tem a ver com sua intimidade e sua sexualidade não interessa a ninguém (por que interessaria?). Por tudo que passou, não sente a necessidade de destilar ódio aos que não a aceitam mulher: ela apenas é.

P.S.: O presente texto é em homenagem a Chirley, que Deus continue a lhe proteger.