“O tempo não significa nada”
Personagem desconhecido de “L´anne denieere em Marienbad”.
(Alain Resnais, 1961)
Poderia se dizer que é dentro da ficção que se constroem os mais verídicos traços de realidade. O que poderia ter sido dito durante os anos 1960, então, com essa nova realidade desenhada nas ficções da “nouvelle vague”, um movimento cinematográfico altamente influenciado pelo neorrealismo italiano e filho do realismo poético francês?
O historiador Eric Howsbawn escreveu certa vez que a Segunda Guerra Mundial deu por finalizada qualquer tipo de visão esperançosa que tivemos sobre a nossa civilização ocidental. Uma nova forma de consciência abriu-se após o horror do holocausto, condicionando o pensamento da geração e, consequentemente, as novas criações, análises socioculturais e formas de construção política.
O pacifismo, a descrença no estado burguês – universalizada por uma quantidade cada vez maior de jovens ativistas e intelectuais, o ceticismo no surgimento de um “novo homem” (frustrado na URSS e na Alemanha nazista), o desdém pela “família-núcleo” burguesa que tinha engendrado os monstros responsáveis do massacre na Europa e em grande parte do mundo: de modo geral, essa é a nova consciência que caracteriza o mundo pós-guerra.
Tudo isso levou à necessidade de contar uma nova realidade: logos, ethos e pathos tinham que ser reinventados porque não se pode contar uma nova realidade se não for contada por uma forma diferente de contar (e produzir).
No cinema, e com a Nouvelle Vague, o Ethos estava agora nas mãos do diretor, ele passou a ser o eixo nuclear de toda a parte criativa do filme, em um movimento que se iniciou pelo “cinema de autor” em contraposição ao modelo hollywoodiano aonde o produtor impunha visões de estreito vínculo com o comercial. O Ethos muda a partir de uma nova forma de produzir, mais ágil, dinâmica e econômica, saindo do estúdio e levando a câmera para a rua. A câmera, para a Nouvelle Vague, chamava-se “Caméra Stylo” (utilizada livremente como caneta de um poeta).
No Pathos, o movimento abriu a porta para a eclosão do feminino na consciência ocidental. Uma mulher sensualizada e independente aparece na trama de quase todos os filmes. Não é a toa que o diretor do documentário sobre Godard e Trouffaut, Emmanuel Laurent, afirma que “a Nouvelle Vague inventou a mulher”. Porém, seria mais justo dizer que retratou sensualmente uma mulher que estava se reinventando. É rejeitada qualquer tipo de épica para se dedicar exclusivamente ao tratamento do cotidiano, temáticas de aparência banal que escondem a profundeza do espírito humano mais comum.
Logos trataria da lógica. Nesse sentido, a Nouvelle Vague também criou uma nova logica de montagem. O desejo era quebrar definitivamente a estrutura narrativa tradicional do cinema – matar Griffith era a missão. Aparecem os jumpcuts, a morte da continuidade, as câmeras tremidas, os planos de costas. O filme não parece ir para lugar nenhum além de dar voltas em seu próprio discurso humano e social.
O cinema e o tempo
Turffaut, Godard, Romher e Rivette são alguns dos sobrenomes que encarnam essa nova onda, indiscutivelmente revolucionária no cinema. Era possível ir além de tudo isso? Sempre é possível ir além. Essa tarefa ficou nas mãos de Alain Resnais, co-autor do – talvez – filme mais comentado da história do cinema: O Ano Passado em Marienbad (1961).
“L´anne denieere em Marienbad” parece um filme que volta do futuro. Incompreensível é a única definição que é unanime para todos os críticos que já escreveram algo sobre essa segunda peça de ficção do diretor de “Hiroshima Mon Amour” (1959). Os poucos depoimentos que tanto roteirista quanto diretor já deram sobre o filme podem confundir ainda mais o espectador dessa trama sem fio condutor. Resnais foi determinante quanto ao sentido e intencionalidade do filme: “fica à interpretação do espectador”.
Existe um comum acordo em afirmar que o filme trata sobre a memória e o tempo, o qual é demasiado evidente pela mesma raiz ontológica da peça. Também ajuda nessa conclusão o primeiro longa de ficção de Resnais, Hiroshima mon Amour, com texto de Marguerite Duras, uma autora com uma profunda preocupação pela intensidade do tempo e do amor, dentro do tempo.
Nos dois filmes, existe um diálogo denso entre um casal, nos dois filmes a brutalidade das falas é extremamente sutil, ou existe uma brutal sutileza no modo em que os personagens se comunicam. Voltando à ideia do tempo, da densidade e da sua possível estabilidade (estaticidade), é importante citar Borges, quem, ao passo, cita Zenão de Eléia para provar a ideia do tempo infinito. O paradoxo do Zenão está vinculado a uma hipotética corrida entre Aquiles (o mais veloz de entre os deuses) e uma tartaruga:
Aquiles corre dez vezes mais rápido que a tartaruga e lhe dá uma vantagem de dez metros. Aquiles corre os dez metros e a tartaruga se afasta em um; Aquiles corre esse metro e a tartaruga está na frente por um decímetro, Aquiles corre esse decímetro e a tartaruga se adianta por um milímetro; Aquiles, o temível deus, faz esse milímetro e a tartaruga fica na frente por um décimo de milímetro, e assim, ad infinitum, Aquiles nunca a alcança
Em Marienbad, a repetição, os flashbacks e flashforwards provocam uma total perda da orientação enquanto a temporalidade do filme, isto produz uma agoniante sensação de estaticidade temporal. O tempo não transcorre. A voz em off parece estar dessincronizada dos acontecimentos que aparecem na imagem, pelo qual o filme provoca constantemente uma sensação do espectador estar na frente de uma surrealidade. A ideia do que é real e o que é um sonho de algum dos personagens fica bastante confusa. A fotografia cuidadosamente detalhada faz esperar o tempo tudo uma narrativa que a justifique, que justifique esse desdobramento estético tão aperfeiçoado e magistral. Os diálogos entre esses dois personagens, aparentemente amantes, não parecem levar você para lugar nenhum.
Mas o que realmente interessa é esse novo Pathos: do que trata o filme? Além da já mencionada preocupação pela temporalidade e a memória, o filme fala indubitavelmente da impossibilidade na concretização do amor. Se para Hollywood o amor estava simbolizado na união de um casal heterossexual com uma mulher que se realiza do lado de um homem de presencia forte; se na Novelle Vague, o amor é livre, espontâneo e efêmero, com uma mulher sensualizada, independente e imprevisível; em “O Ano Passado em Marienbad” o que parece se refletir é o mundo sem amor, o mundo aonde o amor nunca chega a se concretizar.
Figuras frias, distantes, olhares sem anelos. Os corpos sem amor que aparecem em cada uma das cenas parecem simples estatuas decorativas dessa imensa arquitetura barroca que alberga a história do filme. Talvez a mensagem do filme seja: sem amor, e mesmo com toda a tecnologia do que possamos fazer uso, até os mais estilizados corpos deixam de produzir desejo, viram manqueis do mais refinado mármore, perdidos numa festa inacessível, no centro do labirinto humano. Esquecidos na festa da repetição constante.
Sem amor todos os corpos parecem ser um só, a câmera os atravessa todos de similar forma, as experiências se repetem invariavelmente. As palavras não importam porque o tempo as engole todas, as joga dentro do seu abismo de elasticidade. Como é a nossa experiência com o tempo quando o amor nos abandona e como é essa mesma experiencia quando ele aquece as horas com a sua chegada? O tempo sem amor parece ser uma isolada mansão de corredores labirínticos e infinitos, que fazem do tempo algo infinito, agoniante, denso, e de nós, um Minotauro desesperado e faminto. Os diálogos do tempo sem amor são monótonos, fúteis. Nada poderia ser mais bergsoniano do que esse filme, nada representaria melhor a densidade do tempo, parece ter sido feito com esse propósito e só.
Muitos críticos, diretores e intelectuais até tem declarado que não conseguiram assistir o filme na integra de uma vez só. A agoniante narrativa provoca uma repulsa insuportável em alguns. A experiência temporal é diferente para cada um. Quantas vezes não fugimos já do desamor? Talvez, na mais essencial lógica existencialista, o que faz a diferença é a fita que você escolhe para substituir esse imenso vazio, o vazio do inane filme que se projeta, sem aparente fim, no nosso cotidiano. Qual será então, sua fita escolhida para fugir do Ano Passado em Marienbad?