O dicionário aponta alteridade como “caráter ou estado do que é diferente; que é outro; que se opõe à identidade. Circunstância, condição ou característica que se desenvolve por relações de diferença, de contraste”. O termo não deve ser confundido com austeridade (rigidez; qualidade de quem age com rigor diante dos demais) – embora, na prática, possa ser.
Esse outro, que o termo referencia, faz mais parte da nossa vida do que imaginamos. Segundo o filósofo francês Jean-Luc Nancy, somos um ser-com, que depende de outros para existir e só existe porque outros também existem. O outro, o olhar do outro, fala mais sobre nós mesmos do que podemos imaginar. Neste sentido, o trabalho do fotógrafo Philippe Bazin pode ser citado. Entre seus inúmeros projetos artísticos, Faces (1985-1866) pode ser abordado quando tratamos da alteridade.
Em seus retratos de idosos, bebês, crianças e loucos, faces encaram a lente da câmera sem pretensão, pose ou exibicionismo. Quais pessoas estão por trás dessas faces? Quais histórias estão por trás desses olhares? Impossível passar pela imagem do outro sem ser tocado de alguma forma.
No site do fotógrafo (clique aqui para acessar), Bazin explica a influência de Michel Foucault durante o processo de construção da série. Para ele, os rostos dessas criaturas diversas põe em perspectiva seu ingresso nos grandes dispositivos sociais (especialmente em instituições médicas: maternidades, hospitais, sanatórios, clínicas para idosos), do nascimento à vida. Ele explica:
“Questionando a alteridade e particularidade como fundamento de uma memória coletiva para o presente – através das fotografias, trago à visibilidade um conjunto de pessoas às quais não se dá atenção. Nesse espaço expositivo, quem não tem visibilidade coletiva é visível de novo. A questão também não é tanto fazer um retrato, no sentido usual da frase, quanto reivindicar a presença no mundo de seres que são desconhecidos para mim, mas sem os quais eu não poderia viver. Essa consciência da alteridade está no coração do meu projeto artístico”.
Da mesma forma, podemos abordar o trabalho da fotógrafa suíça Cláudia Andujar, naturalizada brasileira. No início dos anos 1980, Claudia fotografou os índios da tribo Yanomami (que significa “seres humanos”) para um registro de vacinação. Era preciso registrar os dados coletados de cada indivíduo, porém, para surpresa da artista, esta tribo, culturalmente, não atribui nomes individuais a cada membro do grupo.
A solução encontrada foi de fotografá-los com números de identificação, usando o fundo natural do ambiente para registrá-los. Sem pose, sem entender o motivo daquele registro, e marcados com números que não significavam nada para eles, os índios encaravam as lentes de Andujar.
Assim como os judeus nos campos de concentração, os retratos numerados eram apenas para conferência de dados, porém o resultado transformou-se em livro e exposição, pois aquelas imagens não poderiam ser apenas registro de identificação.
Jean-Luc Nancy ainda afirma que somos um “ser singular plural”. E o que ele quer dizer com isso? Quer dizer que somos singularmente plurais e pluralmente singulares. À medida que EU sou composta pela pluralidade de TUDO que me cerca – pessoas, tradições, região, cultura – com minha singularidade, com minha personalidade única, sou influenciada, mesmo sem perceber, por todos que estão a minha volta, fazendo-me pluralmente singular.
Quando meus múltiplos EUS (eu do trabalho, eu de casa, eu da família, eu dos amigos…) influenciam, ou levam para os OUTROS um pouco de mim, estou sendo singularmente plural.
Então, se somos um pouco de tudo e um pouco de todos, por que o padrão predominante configura-se no tradicional esquema de representação de um “homem branco, magro, heterossexual de classe média alta”? Por que o que foge deste padrão fica às margens e é marginalizado simbólica e legalmente? Por que as diferenças não são aceitas, se TODOS somos um “ser singular plural”?
Para a cultura contemporânea, essas respostas podem ser (re)pensadas pela insistência transcendental da expressão artística. É possível, tanto no trabalho de Bazin quanto no de Andujar, correlacionar o conceito ocidental de “sujeito” a partir de múltiplas representações do existir socialmente. Ao aproximarmos nossa compreensão e sensibilidade da alteridade, podemos encontrar na arte um campo de experimentos para a compreensão dessa singularidade plural.
Para encerrar, apresento The eyes of Gutete Emerita, do fotógrafo chileno Alfredo Jaar. O artista chama a atenção para traumas sociais como genocídio, guerras e a fome, principalmente em 1994 quando visita Ruanda logo após um grande genocídio.
Na Igreja Ntarama, perto da capital Kigali, quatrocentas pessoas, da minoria Tutsi, estavam refugiadas. Ali foram emboscadas e assassinadas. Durante sua pesquisa para o Rwanda Project, Alfredo Jaar conheceu Gutete Emerita, uma mulher que assistiu a chacina do seu marido e dois filhos, e cujos olhos registraram para sempre o acontecimento.
A instalação The Eyes of Gutete Emerita (para saber mais, clique aqui), traz uma mesa de luz, um olhar e um milhão de slides – equivalente ao número aproximado de vítimas ruandesas até o ano 2000. A imagem mostra a dor daqueles olhos que sobreviveram ao massacre.
Gilles Deleuze diz que a emoção não diz “eu”, porém escutamos muito EU, pouco NÓS e quase nenhum OUTRO. Estaremos nós – diante do outro – ficando sem emoção? Talvez a arte, com suas múltiplas noções de sujeito, possa ser um campo muito mais discursivo do que subjetivo.