Recentemente, li em uma reportagem sobre o poeta surrealista René Char que a partir do momento em que tomamos distância dos nossos próprios universos (umbigos), podemos contemplar um tipo de liberdade que ele intitula de “liberdade poética”. Na ocasião, encontrei um poema dele que dizia: a imaginação consiste em expulsar da realidade várias pessoas incompletas / (…) / e é então que nos encontramos no inextinguível real criado.
Esse expurgo da realidade proporcionado pela fantasia parece permitir que emerja novos sonhos coletivos, novas proposições de pensamento a partir do contato com a arte. Nesse sentido, o ingresso na contemplação que a arte (principalmente a contemporânea) promove pretende estabelecer patamares de conexão com outros universos. O que a arte nos chama a fazer no momento presente é observar o mundo pela sua exterioridade, entendê-lo como espaço fundamental da alteridade (da diferença como normalidade) e recodificá-lo em poéticas que ora tomam forma de confronto, ora de protesto, ora de guerrilha.
É possível falarmos, então, de uma heterocosmogonia do texto poético. O processo heterocósmico (a capacidade que a arte tem de nos abduzir de nós mesmos) é um componente fundamental de toda contemplação – pois nos subtrai do self, nos coloca em estado latente de conexão com o cósmico e o sobrenatural, nos traz outras provocações de cunho estético, cultural e discursivo. Não podemos observar o mundo da mesma maneira antes e depois do contato artístico. O que fazemos, portanto, quando admitimos a entrada na arte é a desconstrução total das formas de expressão e, consequentemente, das formas de pensamento.
É correto afirmar que o pensar artístico requer um reposicionamento do pensamento enquanto matéria. Se a arte contemporânea admite a si mesmo como mera ideia e prevê sua desmaterialização como forma de trazer a obra ao nível do discurso, é porque assume que o campo artístico é inerentemente aquele da profanação e subversão das realidades que coabitam o terreno social. Para o momento presente, o artista é observado mais como um agente profanador do que um bobo da corte.
Se o nu choca tanto, apenas o faz no contexto de uma sociedade que se esqueceu do corpo. Se a binaridade do gênero parece ser um dos novos paradigmas centrais na sociologia das resistências do século XXI, apenas o é na medida em que a formatação binária provou-se excludente e hierárquica. Se abafamos tanto a voz das manifestações verdadeiramente artísticas para nos embriagarmos da cultura self-service dos pacotes de conteúdo, o fazemos porque o capitalismo já se provou a melhor e maior religião do mundo pós-moderno. Se compreendermos a arte como campo de contra ataques, o fazemos admitindo que a cultura seja primordialmente o campo das experiências sociais.
É nesse ponto que surge um aparente espanto com os abismos. Vivemos inegavelmente a era da espaçonave e é visível a olhos nus que enquanto alguns tentam superar o legado teórico e humano do pensamento pós-guerra da segunda metade do século XX, outros insistem em experimentar os devaneios de uma inquisição tardia.
Dessa perseguição travada a partir de bons costumes (para o século dezenove), nada escapa dos braços desse poder abstrato e invisível: a família, o sexo, o amor, a lousa, os olhos, as criancinhas e as professorinhas. Tudo superficial e de um transe duvidável tamanho o poder destrutivo desse devaneio em grupo.
Tabacaria, o poema de Fernando Pessoa, não é famoso por ter sido slogan de marcas de chiclete, mas por ser inegavelmente um dos poemas mais densos que a literatura portuguesa recente nos deu. É sobre esse homem, que se arrasta entre memória e rua, que o poeta retrata:
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Quando a arte nos convida a rasgar a máscara, nunca o faz como um convite ao mero entretenimento. É sempre soco, sempre alucinação/anunciação, sempre molotov. Se o QueerMuseu agride, é porque os ouvidos tornaram-se frágeis demais. Se o pixo é horroroso, é porque o país enfrenta uma crise de valores tão grande que não se sabe mais diferenciar arte e entretenimento. Se o silêncio parece música, é porque estamos surdos dentro de nossas próprias conchas – e estamos confundindo adubo com pérolas.
Aceitar que a diferença existe é importante porque cada indivíduo vive o seu momento histórico, social e cultural. Hakim Bey, poeta norte-americano, afirmava em um de seus livros dos anos 1980 que a liberdade não viria ao mesmo tempo para todos, pois ela seria essencialmente anacrônica. Como a libertação de certos poderes depende de um conjunto de outros saberes, é impossível que todo mundo saiba ao mesmo tempo sobre a mesma coisa.
A cada um, sua própria busca interior. Num país onde as palavras perderam o sentido e as imagens estão cada vez mais dormentes, cada grupo extremista berra obstáculos à equalização dos poderes estabelecidos no começo da história da civilização. Pregam liberdades desconexas que preveem exclusivamente a coerção do corpo alheio, driblam as teorias pela estratégia da comunicação confusa e estendem um pouco mais (mês por mês, ano por ano) a derradeira conclusão: já vivemos em um mundo composto pela diversidade e pela vontade de funcionarmos em grupo.
O que a arte tem a ver com tudo isso? Logo ela, quando direcionada e esclarecida, tem o poder de alfabetizar para novas sensibilidades. Desconstruindo as normas, as regras e prevendo confrontos no nosso imaginário, possui nada mais do que uma potência. Um ímpeto de dialogar horizontalmente com os universos político, social e sensível – alargando ainda mais nossa experiência coletiva.
Entre a liberdade da coerção e a liberdade da desconstrução, prefiro quem busca a liberdade artística.