Enquanto os homens exercem seus podres poderes
Índios e padres e bichas, negros e mulheres
E adolescentes fazem o carnaval
(Caetano Veloso / 1984)

É certo dizer que, hoje, as correntes de pensamento não binárias são mais do que um conjunto de ideias pós-identitárias, mas que carregam consigo um potencial político intrínseco ao modo como enxergamos o corpo, seus lugares de existir e seus modos de domesticação.

Tiradas do contexto teórico e acadêmico, as afirmações acima fazem parte de um grupo de estudos, principalmente após os anos 1970, sobre o que podemos chamar nos estudos culturais de “sociologia das resistências”. Para que a gente possa compreender amplamente as mudanças de pensamento trazidas por essa ótica, desmembro e explico a afirmação que inicia esse artigo nos parágrafos abaixo.

Obra “Criança Viada” de Bia Leite, no QueerMuseu / Foto: Divulgação

Primeiro, quando afirmo que existem correntes de pensamento não binárias, me refiro ao embate já discutido recentemente pelas pautas midiáticas entre a cisgeneridade e a transgeneriedade. Muito além de tornarem urgentes pautas como a saúde das comunidades trans e os direitos humanos fundamentais que emergem da causa do gênero, as discussões não binárias fizeram com que fossem debatidos e questionados conceitos como machismo, feminismo, sociedade patriarcal, cultura autoritária dominante, entre outros tabus que surgiram e foram esclarecidos nas últimas décadas.

Acontece que essa mudança estrutural de pensamento afeta não somente as comunidades LGBTQI, mas também a forma tradicional de compreendermos as sexualidades, os gêneros e as performances dos corpos – entendendo aqui como performance a forma de nos comportarmos nos ambientes público e privado, como nos mostramos e nos autocensuramos.

Por exemplo, a questão do gênero e da flexibilização das condutas alternantes entre feminino e masculino resultaram em uma política dentro e fora da Internet, pelas mídias tradicional e alternativa, da transformação conceitual do que é ser um homem e uma mulher no século XXI. Trazido para o campo da normalidade (o que é normal de ser debatido, esclarecido, posto em transformação), o corpo conseguiu respeito, visibilidade e melhores condições de representação e existência.

Na década de 1980, Wilza Carla (vedete do teatro) desceu a Rua Augusta montada em um elefante para chegar à Boate Medieval, conhecida por sediar as primeiras festas drag do Brasil / Foto: Divulgação

Por isso chegamos no segundo ponto-chave da provocação inicial desse artigo: o momento pós-identitário. Quando afirmo que existe uma compreensão posterior à identidade, reitero que a democratização da informação na passagem entre o mundo moderno e o contemporâneo fez com que surgisse uma crise fundamental no modo como enxergamos nossa identidade, ou seja, aquele antigo sentido de si, um “eu fundamental” que por muito tempo foi tido como uma característica soberana e inalterável – conferida ao indivíduo em seu nascimento.

Atualmente, vivemos o momento da identidade fragmentada. Como o avanço tecnológico e a democratização da fala no ambiente virtual permitiram que pudéssemos observar a sociedade e as relações humanas de uma maneira mais complexa e anacrônica, surge uma imagem de homem em contínua relação com o conhecimento, o ser do momento presente – em seu ciclo de construir-se e desconstruir-se perante o novo, o fluxo, o progresso contínuo. Por isso se afirma que vivemos a era da pós-identidade, porque já compreendemos que as formas de ser são múltiplas e devem ser respeitadas em sua integridade.

Quando falamos do potencial político desse novo corpo, devemos ter em mente que a desconstrução dos lugares comuns que sedimentaram as relações desde os tempos coloniais subverte os papéis hierárquicos e tradicionais da cultura. Por isso o choque entre opiniões e a divergência entre formas de vida e de pensamento, porque fomos ensinados a temer o desconhecido, a querermos respostas prontas ao invés de sermos instigados à pesquisa, às perguntas, à curiosidade.

A teoria queer (o estudo sobre tudo aquilo que o discurso social da “normalidade” transformou em anormal, estranho, abjeto e subalterno) revela rachaduras no paredão de fuzilamento da normalidade. Prevê a libertação dos padrões, a quebra das algemas de um passado recente colonizado pela dominação do masculino tradicional. O novo masculino, igualitário e racional, jamais perderá espaço em uma sociedade de iguais. Apenas o fantasma do machismo-alfa perde cada vez mais popularidade, respeito e condições de existência.

Isso porque existe um movimento, iniciado nas revoluções de 1960 e 1970, que procura deter os mecanismos de produção de corpos dóceis. Essa forma de pensamento sociológico, iniciada pelo movimento francês de Michel Foucault no pós-60, compreende o sujeito como um ser moldado pela cultura, sobre o qual são embutidos discursos e exercido poderes. O poder da normalidade reside justamente em tornar certos corpos aceitáveis, enquanto outros devem ser afastados (como o corpo dos doentes e dos loucos), subjugados (como o corpo dos idosos) ou retaliados (como o corpo gay ou trans).

Recentemente, comemorou-se em 26 de abril o Dia da Visibilidade Lésbica. Na foto, momento histórico em 1993, na Marcha de Washington pelos Direitos e Liberação de Lésbicas, Gays e Bis / Foto: Divulgação

Quando falamos de corpos dóceis, queremos dizer que há inúmeras possibilidades de moldar o corpo através da imposição de uma cultura dominante. Slogans como “corpo magro e belo”, “másculo e forte”, “corpo ideal” e “corpo normal” servem justamente para empoderar certas vidas e reduzir outras a um mínimo possível de condições de existir.

Um corpo criado, exercitado, capacitado e conduzido à negação de todos os outros corpos torna-se, no momento atual, uma anomalia a ser combatida justamente porque a sociedade tornou-se complexa além do modelo, dos “moldes de fazer gente”, da “normalidade seletiva”. Isso não significa que deva ser retaliado, banido e torturado, mas remodelado cultural e psiquicamente.

A necessidade da construção de uma cultura de resistência se dá justamente porque atua pelo contágio. Toca novos sujeitos em escala diária, inconformados com os padrões estabelecidos pela velha retórica do controle, introduzida na vida moderna pela construção de um modelo patriarcal. É o contágio das novas ideias de liberdade que “ameaça” alargar o conceito de normalidade.

De repente, mais e mais pessoas observam-se pela ótica do normal como equalização dos poderes sobre o corpo. Contra o corpo dócil, o corpo que se manifesta, que se introduz no centro dos poderes e dos costumes. Aquele que se amplia, que não se submete, que exerce contágios e exercita novas possibilidades.

Contra podres-poderes, o corpo grita setecentas mil vezes.