Em uma entrevista recente para o jornal espanhol El País, a cineasta argentina Lucrecia Martel fez uma declaração muito pertinente sobre a forma como assistimos produtos audiovisuais. Para Martel, o atual consumo de séries do Netflix aponta para uma sociedade ansiosa. Ou seja, o binge watching – consumo frenético de inúmeras temporadas uma atrás da outra, que seguem um mesmo padrão narrativo, construído e estudado pelos setores de marketing – é sintoma de uma sociedade que, por mais que anseie por tudo, está eternamente insatisfeita.
As séries da Netflix são, em muitos casos, de alta qualidade técnica. Centradas no roteiro e na interpretação dos atores, investem na dramaturgia e nos livram, inclusive, da obsessão de Hollywood pelos efeitos especiais e explosões pirotécnicas. Mas a opinião de Martel não deixa de fazer (muito) sentido na medida em que reflete sobre como consumimos materiais culturais nos dias de hoje.
Especialistas falam que, em 2018, 80% dos conteúdos que circulam na internet e nas redes sociais serão de audiovisual (imagens em movimento e sons). Isto significa que as pessoas precisam, mais do que nunca, se alfabetizarem para essa linguagem.
Hoje, com o amplo acesso aos meios digitais, somos tanto consumidores como produtores audiovisuais. Os jovens leem cada vez menos, mas, no entanto, gravam e editam vídeos com a maior facilidade e desenvoltura. A necessidade da linguagem visual e sonora é o trunfo dessa geração. Basta ver, por exemplo, as narrativas conceituais e altamente criativas que articulam imagem, som e texto no Instagram.
Porém, com o incessante estímulo ao consumo de produtos que norteiam a cultura pop e a vida cotidiana, é necessário repensar o contexto de interpretação desses inúmeros estímulos perante o público consumidor. O que é preciso explorar, principalmente com populações mais jovens, é uma alfabetização para a convergência de meios de comunicação e entretenimento. Com o surgimento da Internet, o cinema e a televisão não morreram, só passaram por transformações e atualizações.
O consumo no Netflix retoma o ambiente da televisão doméstica, com elementos de cinema, celular e internet. Um meio, portanto, não exclui o outro. A experiência de ir ao cinema, mesmo que em menor escala atualmente, ainda é uma das mais fascinantes experiências sensoriais que a modernidade nos proporcionou. E deve conviver e dialogar, na minha opinião, com o poder de oferta e demanda de séries. Isso amplia a gama de referências e universos nos quais nossos jovens tomam contato com mais culturas, mais pontos de vista, mais experiências de entretenimento – lembrando que experiências fora da tela também são fundamentais para a saúde cultural e essenciais para uma vida mental saudável.
Resgatando o pensamento da cineasta Lucrecia Martel, o atual consumo de produtos audiovisuais reflete nossa cultura, pautada no excesso de informação e no tempo escasso, mas, por outro lado, reflete uma maior autonomia e consciência do espectador frente ao consumo, basta que saibamos dosar cada vertente do entretenimento.